quinta-feira, julho 24, 2008
Porcarias, por Marie Darrieussecq
Paul McCarthy, Mechanical Pig (detalhe), 2005.
"Sei que esta história poderá causar confusão e angústia, que vai perturbar as pessoas. Imagino que o editor que aceitar a responsabilidade deste manuscrito vai se expor a infinitos aborrecimentos. Talvez ele não seja poupado da prisão, e desde já quero pedir desculpas pelo transtorno. Mas preciso escrever este livro sem mais tardar, porque se me encontrarem no estado em que estou agora, ninguém vai querer me escutar nem vai acreditar em mim. Ora, segurar uma caneta me dá cãibras horríveis. Também me falta luz, sou obrigada a parar quando a noite cai, e escrevo muito, muito devagar. E nem vou contar a dificuldade que foi encontrar este caderno, nem falar da lama que suja tudo, que dissolve a tinta que mal secou. Espero que o editor que tiver a paciência de decifrar esta letra de porco leve em conta os esforços terríveis que faço para me concentrar e tento recuar o mais longe que posso, isto é, a logo antes dos acontecimentos, consigo encontrar as imagens. Devo confessar que a vida nova que estou levando, as refeições simples com que me contento, esta morada rústica que me satisfaz plenamente e esta espantosa aptidão para suportar o frio que descubro conforme o inverno vai chegando, tudo isso me leva a não ter saudades dos aspectos mais sofridos da minha vida de antes. Recordo que quando tudo começou eu estava desempregada e que a procura de um trabalho era um tormento que hoje eu já não compreendo. Suplico ao leitor, e mais ainda ao leitor desempregado, que me perdoe essas palavras indecentes. Mas neste livro, infelizmente, as indecências não vão ser poucas; e rogo a todas as pessoas que possam se sentir chocadas que me desculpem."
DARRIEUSSECQ, Marie. Porcarias. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 7-8.
Parábola sobre o moralismo "politicamente correto", Porcarias é um romance que explora o tema literário da metamorfose dentro de uma linhagem que vai de Ovídio e La Fontaine a Kafka e Ionesco. Permeado por um humor que beira o escatológico, o romance de Marie Darrieussecq é a história de uma vendedora de perfumaria que se prostitui para seus clientes e cujo corpo vai paulatinamente se transformando. Sob essa trama insólita, insinua-se a sátira de uma sociedade obcecada pelo culto ao corpo e à saúde, a caminho do fascismo e da perversão sexual -- uma sátira que, contada do ponto de vista zoomórfico do narrador, demonstra que o escárnio é a melhor forma de resistência aos lugares-comuns às verdades bestializantes do puritanismo contemporâneo.
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