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quarta-feira, junho 06, 2012
Possibilidades
"Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações ilustradas,
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
e muitas coisas também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter a sua razão".
Wislawa Szymborska. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
segunda-feira, maio 07, 2012
Encontro
"No encontro, maravilha-me o fato de ter achado alguém que, com pinceladas sucessivas, sem falhas, conclui o quadro da minha fantasia; sou como um jogador cuja sorte não se desmente e faz com que ele ponha a mão na pequena peça que vem, já na primeira tentativa, completar o quebra-cabeça de seu desejo. É uma descoberta progressiva (e como que uma verificação) das afinidades, cumplicidades e intimidades que poderei manter eternamente (no meu modo de ver) com um outro, em via de tornar-se, assim, 'meu outro': estou inteiramente voltado para essa descoberta (e com ela estremeço)(...). A cada instante do encontro, descubro no outro um outro eu mesmo: Você gosta disso? Puxa, eu também! Você não gosta daquilo? Eu também não! (...) O Encontro faz com que o sujeito amoroso (já seduzido) experimente o atordoamento de um acaso sobrenatural: o amor pertence à ordem (dionisíaca) do lance de dados".
BARTHES, Roland. "Encontro", in: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.137-138.
sexta-feira, abril 20, 2012
O Divertimento Japonês de Proust
"E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonice me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas -- e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota -- se haviam anulado ou então, adormecidas, tinham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, guardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
(...)
E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque no Sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidades e jardins, de minha taça de chá".
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, pp. 73-74.
quinta-feira, abril 19, 2012
A Filha do Sonho
"Às vezes, como nasceu Eva de uma costela de Adão, nascia uma mulher, durante meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Oriunda do prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela que me oferecia. Meu corpo, que sentia no dela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava. O resto dos humanos se me afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minha face estava ainda quente de seu beijo e meus membros doloridos pelo peso de seu corpo. Se, como às vezes acontecia, apresentava os traços de alguma mulher a quem conhecera na vida, ia dedicar-me inteiramente a este fim: encontrá-la, tal como os que empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada. Pouco a pouco sua lembrança se dissipava, e eu esquecia a filha de meu sonho". PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Ed. Globo, 2006, p. 22.
sexta-feira, abril 13, 2012
Sonhos, lugar incomum
"O território singular do sono e dos sonhos é o contrário do lugar (em) comum, o território noturno das quimeras incomunicáveis porque desafiam a razão e a linguagem comuns, o lugar do irracional tão perigosamente parecido com as fantásticas criações dos loucos, dos extravagentes e dos insensatos aos quais Descartes compara, na primeira de suas Meditações, as alucinações de seus sonhos".
GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Entre sonho e vigília: quem sou eu?", posfácio de PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, p. 545-6.
quarta-feira, abril 11, 2012
Omelete de Amoras
"Era uma vez um rei que chamava de seu todo poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava mais melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: -- Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e me tens servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de seu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinquenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma vovozinha, que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer. -- Então o cozinheiro disse: -- Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que a batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro. -- Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes".
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 219-220.
quarta-feira, fevereiro 22, 2012
O que nos faz envelhecer?
"Ele [Proust] estava convencido de que não temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada. É isso que nos faz envelhecer, nada mais. As rugas e dobras do rosto são as incrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelas intuições que nos falaram, sem que nada percebêssemos, porque nós, os proprietários, não estávamos em casa".
Walter Benjamin. "A imagem de Proust", in: Walter Benjamin, Obras escolhidas. Vol. I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 46.
domingo, novembro 06, 2011
O homem absurdo
"'Meu campo -- diz Goethe -- é o tempo'. Eis propriamente o enunciado absurdo. O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e seu raciocínio. A primeira lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem, o segundo lhe ensina seus limites. Seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de sua vida".
Albert Camus, O mito de Sísifo.
(Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 79).
Albert Camus, O mito de Sísifo.
(Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 79).
quinta-feira, agosto 18, 2011
sábado, maio 28, 2011
De l'amour
"Uma pessoa que ama é assiduamente e sem interrupções ocupada pela imagem da pessoa amada".
Stendhal. Do amor.
(Porto Alegre, L&PM, 2007, p. 261).
Stendhal. Do amor.
(Porto Alegre, L&PM, 2007, p. 261).
domingo, maio 22, 2011
Fútil metafisicamente
“Toda a vida fui fútil metafisicamente, sério a brincar”.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
(São Paulo, Companhia de Bolso, 2006, T. 135, p. 154).
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
(São Paulo, Companhia de Bolso, 2006, T. 135, p. 154).
sábado, maio 21, 2011
Festas a um Gato
"Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito".
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
(São Paulo, Companhia de Bolso, 2006, T. 27, p. 60)
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
(São Paulo, Companhia de Bolso, 2006, T. 27, p. 60)
sexta-feira, abril 29, 2011
terça-feira, abril 26, 2011
Do Desejo, por Hilda Hilst
"Por que há desejo em mim, é tudo cintilância".
Hilda Hilst. Do desejo.
(Campinas, Pontes, 1992, p. 9)
Hilda Hilst. Do desejo.
(Campinas, Pontes, 1992, p. 9)
sexta-feira, abril 08, 2011
Viver é ser Outro
"Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O menor episódio -- uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro com os passos de quem a diz juntos aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar -- todas essas coisas, que não me pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida. Vivo de impressões que não me pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu."
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia do bolso, 2006, T.94, pp. 123-124)
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia do bolso, 2006, T.94, pp. 123-124)
quinta-feira, abril 07, 2011
A vida é sonho, por Fernando Pessoa
"Nunca durmo: vivo e sonho, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é a vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo".
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia de bolso, 2006, p. 323).
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia de bolso, 2006, p. 323).
segunda-feira, abril 04, 2011
O universo é o sonho de si mesmo
"Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, interseccionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração".
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia de bolso, 2006, § 285, p. 280).
Fernando Pessoa. Livro do desassossego.
(São Paulo, Companhia de bolso, 2006, § 285, p. 280).
segunda-feira, março 28, 2011
Amar, por Carlos Drummond de Andrade
"Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amar sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma eterna ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita".
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amar sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma eterna ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita".
sexta-feira, fevereiro 25, 2011
"Somos nossos próprios demônios"

Gustave Doré, Satã, ilustração do Paraíso Perdido de Milton, c. 1866.
DEMÔNIOS. Parece às vezes ao sujeito amoroso estar possuído por um demônio de linguagem que o obriga a ferir a si próprio e a se expulsar -- segundo a proposição de Goethe -- do paraíso que, em outros momentos, a relação amorosa constitui para ele.
1. Uma força precisa arrasta minha linguagem em direção ao mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor de meu discurso é a roda livre: a linguagem vai girando, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro fazer mal, expulso-me a mim mesmo de meu paraíso, empenhamdo-me em suscitar em mim as imagens (de ciúmes, de abandono, de humilhação) que podem me ferir; e aberta a ferida, mantenho-a, alimento-a com outras imagens, até que um outro ferimento venha provocar a diversão.
2. O demônio é plural ("Meu nome é Legião", Lucas, 7,30). Quando um demônio é repelido, quando finalmente impus-lhe silêncio (por acaso ou luta), um outro levanta a cabeça ao lado e se põe a falar. A vida demoníaca de um amante assemelha-se à superfície de uma solfatara*: grandes bolhas (ardentes e lamacentas) eclodem uma após a outra; quando uma baixa e apazigua-se, retorna à massa, uma outra, mais adiante, se forma, infla. As bolhas "Desespero", "Ciúme", "Exclusão", "Desejo", Incerteza de conduta", "Pavor de perder a dignidade" (o mais perverso de todos os demônios) fazem "ploc" uma após a outra, numa ordem indeterminada: a desordem mesma da Natureza.
3. Como repelir um demônio (velho problema)? Os demônios, principalmente se são de linguagem (e que mais poderiam ser?), se combatem pela linguagem. Posso pois ter a esperança de exorcizar a palavra demoníaco que me é soprada (por mim mesmo) substituindo-a (se acaso eu tiver tal talento linguageiro) por uma outra palavra, mais pacífico (caminho para a eufemia). Assim: eu acreditava ter finalmente saído da crise, quando repentinamente -- incitada por uma longa viagem de carro -- uma verborragia me possui, não paro de me agitar no pensamento, no desejo, na nostalgia, na agressão do outro; e acrescentoo que sofro uma recaída; mas o vocabulário francês é uma verdadeira farmacopeia (veneno de um lado, remédio do outro): não, não se trata de uma recaía, trata-se apenas do último sobressalto do demônio interior.
* Cratera de vulcão extinto de onde se exalam vapores de enxofre ou gás sulfídrico; sulfureira.
Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso.
(São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 111-113).
quarta-feira, dezembro 29, 2010
Do Desejo, por Hilda Hilst
Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?
Hilda Hilst. Do desejo.
(Campinas: Pontes, 1992, p. 15).
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?
Hilda Hilst. Do desejo.
(Campinas: Pontes, 1992, p. 15).
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