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quarta-feira, julho 14, 2010

Do Trágico ao Abjeto


Máscara de Dionísio, Myrina, século II a.C.

Se não fosse pela criação do resplendente panteão de deuses olímpicos, de que outra maneira poderiam os gregos – povo tão singularmente propício ao sofrimento –, suportar os horrores da existência humana? A pergunta é lançada pelo jovem Nietzsche, que, pelo viés da sabedoria de Sileno, toca em um ponto fundamental para a compreensão da essência mesma do trágico, da Grécia antiga à contemporaneidade: a questão do tratamento da dor e do sofrimento pelas representações artísticas.

Aléxia Cruz Bretas

Contra Platão, Aristóteles escreve em sua Poética sobre o prazer proporcionado pela mímesis, observando, a respeito da pintura, que temos prazer em contemplar coisas cuja visão é digna de pena quando sua imagem é reproduzida com perfeição – como no caso de bichos desprezíveis e cadáveres.

Já com relação às artes dramáticas, o filósofo deixa registrada sua canônica definição de tragédia, caracterizando-a como uma representação de uma ação nobre, de certa extensão, em linguagem elevada, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando piedade (éleos) e temor (fóbos), opera a catarse própria dessas emoções. Portanto, sob a perspectiva da teoria poética clássica, o abalo provocado pela apresentação de cenas chocantes, que geram compaixão e medo, enseja consequências tão prazerosas quanto úteis: purifica as emoções do espectador, reconciliando-o, ao mesmo tempo, com a realidade circundante.

Entretanto, é somente no fim do século XVII que a hegemonia da tríade belo-bom-verdadeiro viria a ser posta em questão, com um notável aumento do interesse pela psicologia da recepção das obras de arte. Neste sentido, a publicação, em 1694, da tradução de Boileau do tratado Do sublime, atribuído ao pseudo-Longino, lançaria as bases para uma nova estética, cujo epicentro seria exatamente a prolífera noção de “sublime”.


Caspar David Friedrich, Monge à beira-mar, 1809.

Se até então o foco da reflexão artística estivera concentrado em aspectos relativos às regras da composição, agora todas as atenções se voltam para o estudo dos sentimentos compostos. Fenômenos como o prazer advindo da contemplação de aparições asquerosas, do feio e de seres monstruosos passam a ser objeto de fecundos debates.

Com isso, opera-se uma radical mudança de paradigma, mediante a virada de uma estética calcada na primazia dos princípios racionais para uma outra centrada na imediatez e na emotividade. Ao invés da análise da imitação e das semelhanças entre o original e a cópia, a ênfase passa a recair sobre o espectador, bem como sobre a relação entre os estímulos e as emoções desencadeadas por eles.

Como resultado, surgem, a partir de meados do século XVIII, duas principais modalidades de “sublime”, cada uma das quais orientada por um vetor específico: são elas o “sublime” sensualista de Burke e o “sublime” espiritualista de Mendelssohn. De certo modo, pode-se dizer que ambas as tendências privilegiam o papel da dor, do sofrimento e dos sentimentos compostos na recepção das obras de arte, em suas múltiplas formas.

Teórico-chave da estética no século XVIII, Edmund Burke apresenta o sublime como um afeto em larga medida alheio aos protocolos da apreensão conceitual, precisamente por se constituir como a manifestação do ilimitado. O autor elabora sua teoria com base em uma distinção fundamental entre o prazer (pleasure) simples ou positivo e o prazer ou deleite (delight) relativo, proveniente da diminuição da dor, do perigo ou de um sofrimento qualquer.

Em linhas gerais, Burke caracteriza o sublime como fenômeno decorrente de um abalo de muita intensidade, capaz de provocar o que chama de deleite ou “horror deleitoso”. Para isso, a participação empática do espectador é condição sine qua non, já que a perda de controle diante de uma força superior que atinja e arrebate o indivíduo é requisito fundamental para a consumação da experiência artística em toda a sua plenitude.

Enquanto para Burke, a categoria do sublime indica algo “inominável”, para os teóricos alemães ele é um conceito entendido como manifestação do infinito, isto é, de uma entidade superior e até divina. Para Moses Mendelssohn, em particular, tal sentimento de natureza mista surge na apreensão de objetos cuja grandeza não poder ser abarcada de uma só vez pelos sentidos. Ou seja, há uma inadequação entre a obra contemplada e nossa limitada capacidade de percepção, tanto sensível quanto intelectual.

Por isso, o sublime se configura como o grau mais elevado do poético. Indissoluvelmente vinculado ao império das emoções heterogêneas – as quais tendem a nos impressionar mais –, o grande ideal da arte é, para Mendelssohn, o abalo prazeroso de seu espectador, conforme se verifica, por exemplo, nas telas de Caspar David Friedrich, William Turner e John Constable, entre outros.

Para evitar, quer a monotonia, quer o simples asco, a arte se volta então para a representação do que há de mais chocante, oscilando pendularmente entre os extremos do grito de dor e do silêncio absoluto: reflexo da consciência da insuperável incapacidade de abarcar o mundo de modo conceitualmente articulado.

Neste sentido, são dignas de nota as ideias de Lessing sobre o tema. Em resposta ao classicismo de Winckelmann, o autor redige seu Lacoonte a fim de explicitar as especificidades da pintura e da poesia, detendo-se na análise do grupo escultórico de mesmo nome para apresentar os fundamentos de sua pregnante concepção estética.


Grupo escultórico do Laocoonte, Vaticano.

Segundo ele, o artista plástico deve evitar sumariamente a representação do grito, do grotesco escancaramento da boca, sob o risco de ultrapassar, com a descuidada exposição da carne, ou das “entranhas”, os limites da própria arte. Para Lessing, a configuração da boca aberta redunda na saída do campo estético, isto é, na impossibilidade do exercício do pensamento ao ser subjugado pela própria realidade imediata. Reenviando ao texto de Mendelssohn, o autor é enfático: “Os sentimentos de asco são sempre natureza”.

Esta ideia, por sinal, revela-se de suma importância para o entedimento de um certo “deslizamento” semântico da noção do “sublime” – prevalente, sobretudo, entre os românticos – em direção a uma categoria crucial para a compreensão da representação da dor e do sofrimento na arte contemporânea: o abjeto. Se o trágico aspira à catarse e o sublime remete ao espiritual, o abjeto se volta para a materialidade do corpo. Não por acaso, a pele, os orifícios, fluidos e dejetos são os suportes privilegiados deste modo de apresentação do “asqueroso”.

Formulada por Julia Kristeva no ensaio Poderes do horror, de 1980, a categoria do abjeto deriva da psicanálise e da teoria literária, dirigindo-se, com Freud, Bataille e Lévi-Strauss, ao campo caótico e pré-simbólico da natureza – locus por excelência do animal e, de forma paradigmática, do cadáver. Como manifestação do que há de mais primitivo em nossa economia psíquica, o abjeto nasce de um recalque originário anterior ao próprio ego individualizado – como, por exemplo, no satanismo de Lautréamont, no teatro de Artaud e nas metamorfoses de Kafka.


Patricia Piccinini, We are family, 2003.

Em tempo, Kristeva, aristotelicamente, vislumbra na arte uma das modalidades de purificação do abjeto: a sua aparição teria o papel de controlar sua força. Contra Mendelssohn, Lessing e Kant, que percebiam na representação de objetos repugnantes ou asquerosos um tema completamente estranho à arte por ser “sempre natureza”, a autora mostra que o que importa agora é precisamente o contrário: a apresentação da realidade – que bloqueia nossa imaginação, mas fomenta o pensamento.

A título de ilustração, cabe citar, aqui, a exposição de renome internacional concebida pelo médico Gunther von Hagen, Mundos do corpo (Körperwelten). A mostra exibe “esculturas” feitas de cadáveres humanos submetidos ao processo de “plastinação” e apresentados como “obra de arte”. Fornecidos pela polícia chinesa e de países da ex-União Soviética, a famosa e não menos polêmica exposição dos corpos vem demonstrar, de maneira bastante eloquente, a relação espúria entre esta espécie de “arte abjeta” e a radicalização da figura política do homo sacer em nossa época.

Em conclusão, podemos afirmar que, contemporaneamente, a espetacularização da dor não redunda mais em uma kátharsis com a participação empática do espectador, mas procede a partir de um olhar educado pela percepção do sublime dos séculos XVIII e XIX, culminando com o avesso da identificação piedosa, ou seja, com a pura dessubjetificação sem o momento da fusão extática.

Neste caso, a catarse só pode ser pensada como escritura do corpo, isto é, enquanto comunhão regressiva com o proto-eu simbólico anterior ao lógos – que autores como Adorno se referirão como o “animal” ou o “inumano”. As fotomontagens de Joel Peter Witikin, as criaturas híbridas de Patricia Piccinini e algumas esculturas de Louise Bourgeois são apenas três de suas muitas facetas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Arte Retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro.
LESSING, G. E. Lacoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998.
LONGINO. Do sublime. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005.

quarta-feira, setembro 02, 2009

Aprendendo a Ensinar por Constelações

O convite de Walter Benjamin à educação



Com uma produção heterogênea e, muitas vezes, fragmentária, Walter Benjamin é um pensador instigante, cujas contribuições para a educação são indissociáveis do restante de sua obra

Aléxia Cruz Bretas

Vale lembrar que a biografia deste autor alemão encantado por Paris é indelevelmente marcada pelas contingências históricas que atravessam toda a primeira metade do século XX, refletindo-se não apenas no teor fortemente político de ensaios como “Teorias do fascismo alemão” (1930) e “Experiência e pobreza” (1933), mas também no caráter provisório e descontínuo de trabalhos controvertidos como as Passagens (1927-1940).

Seja como for, o legado de Walter Benjamin para a educação pode ser auferido no volume com a compilação de suas Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, mas, absolutamente, não se restringe a ele. Na medida em que boa parte de seus escritos questionam – direta ou indiretamente – as convenções predominantes entre as grandes corporações de ensino, é preciso que se atente para as perspectivas abertas por uma ainda embrionária teoria da aprendizagem, cuja base se assenta sobre uma tríplice crítica: 1) crítica ao declínio dos modos tradicionais de experiência, discurso e narração; 2) crítica à excessiva compartimentalização e instrumentalização das disciplinas ditas especializadas; 3) crítica à pretensa neutralidade do processo de aquisição, tratamento e transmissão do conhecimento.

A partir destas considerações preliminares, chega-se não exatamente a um programa ou pauta de ensino, mas a um projeto in progress, a ser potenciado por educadores, professores e intérpretes – talvez, por isso, seja mais adequado referir-se a uma tarefa ou a um convite, e não propriamente a uma herança ou legado.

A questão do método
“Método é caminho indireto, é desvio.” Com esta sentença, tão paradoxal quanto provocadora, Walter Benjamin justifica o caráter labiríntico de seu polêmico livro do Barroco, resumindo a metodologia anticartesiana que o acompanhará dos primeiros aos últimos textos. A despeito da sumária rejeição pelo conservador meio acadêmico alemão dos anos 20, seu trabalho de juventude contém algumas das proposições mais fundamentais para a compreensão de seu modo bastante peculiar de – nas palavras de Adorno – filosofar mesmo contra a própria filosofia.

Isso quer dizer que, a fim de encontrar formas alternativas para representar o que, muitas vezes, escapa às categorias e procedimentos autorizados pela ciência, Benjamin se vale de recursos “limítrofes” como a técnica da montagem, a metáfora ou a alegoria. Donde resulta um pensamento essencialmente plástico, não-linear, composto de pequenos fragmentos significativos agrupados segundo uma lógica imprevista – como os mosaicos góticos ou as colagens dadaístas.

“As ideias se relacionam com as coisas, assim como as constelações com as estrelas.” Com esta sugestiva analogia, Benjamin pretende levar adiante sua iniciativa de resgatar os fenômenos, eventos ou casos particulares, que por suas características excepcionais, não são englobados pela dinâmica universalizante dos conceitos, permanecendo, pois, à margem do conhecimento dito “oficial.” Aqui, o exemplo utilizado pelo autor é o do drama barroco alemão – na época, não levado a sério pelos estudiosos, pelo fato de não se enquadrar dentro do que Aristóteles, um dia, definira através de seu canônico conceito de tragédia.

Da narrativa à informação

Ainda com relação ao livro do Barroco, Benjamin ressalta a necessidade de encontrar uma forma de apresentação que esteja à altura dos impactantes acontecimentos históricos. Na verdade, a motivação de revelar o lado oculto das coisas à luz de sua irredutível temporalidade é um dos traços mais expressivos da experiência intelectual do autor de ensaios inevitavelmente marcados pelo trauma da guerra – como, por exemplo, “O narrador” (1936).

Chamando atenção para um fato que até hoje repercute diretamente sobre o processo de assimilação e compartilhamento de conteúdos culturais os mais diversos, ele constata: a arte de narrar está em vias de extinção. Segundo o autor, com o desenvolvimento das forças produtivas, teríamos progressivamente perdido a faculdade de intercambiar experiências comunicáveis. O primeiro anúncio de seu desgaste é dado pelo surgimento do romance, ainda no início do período moderno. Fundamentalmente, o que distingue o romance da narrativa é que ele está essencialmente vinculado ao livro – daí a enorme importância da invenção da imprensa para sua difusão.

Mas não é só isso. Com a consolidação da burguesia e o acelerado aprimoramento das novas técnicas de reprodução, surge uma outra forma de comunicação, substancialmente diferente tanto da narrativa, quanto do romance: a informação. Apontando para as possíveis consequências deste fenômeno para a preservação da tradição oral e, por extensão, da memória coletiva, ele compara: “A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.”

Escovar a história a contrapelo

No entanto, apesar de diagnosticar um certo enfraquecimento das formas seculares de acesso e propagação do conhecimento, Benjamin não se volta nostalgicamente para um passado mítico imune às transformações históricas, mas vislumbra no âmago mesmo do desenvolvimento das novas tecnologias as chances para uma abrangente revolução social. Tanto que, no ensaio onde discute as perspectivas inauguradas pela fotografia e o cinema, o autor defende que a perda da “aura” seria o prenúncio de um processo irreversível, no qual as obras de arte trocariam seu valor de culto por seu valor de exposição. Isso quer dizer que, emancipadas do aqui-e-agora no qual foram criadas, elas deixariam a “existência parasitária” da tradição para alcançar o horizonte político propriamente dito. Segundo ele, mediante esta significativa virada, não só o plano da percepção estética, mas todo o âmbito da existência material se modificaria qualitativamente.

Não é supérfluo observar que se Benjamin insiste na urgência de uma ruptura com os dispositivos da ordem vigente, isso se deve não apenas às singularidades da conjuntura política alemã desde a ascensão de Hitler ao poder em 1933, mas à consciência mesma de que este catastrófico “estado de exceção” só foi possível sustentado por um longo e contínuo caminho percorrido pela civilização desde os primórdios.

Assim, antecipando aquilo que Adorno e Horkheimer chamarão de “autodestruição da razão” em sua célebre Dialética do Esclarecimento (1947), ele pondera em suas teses “Sobre o conceito de história” (1940): “Todos os bens históricos (...) têm uma origem sobre a qual não se pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que as criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”

Pode bem ser que a disposição de “salvar” aqueles aspectos, muitas vezes, negligenciados pelos protocolos do saber oficial, e com estes “restos” compor uma nova constelação de conhecimentos a serem apropriados pelas próximas gerações seja, no fim, a maior e mais duradoura contribuição de Walter Benjamin para a educação – quem sabe, seu “salto tigrino” pelo céu da história.

Algumas obras do autor
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Ed. 34, 2002.
__________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
__________. Obras escolhidas, Vols. 1-3. São Paulo: Brasiliense, 1995.
__________. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

Sobre o autor
BRETAS, Aléxia. A constelação do sonho em Walter Benjamin. São Paulo: Humanitas, 2008.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1993.
_________. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
MATOS, Olgária. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 2006.
PALHARES, Taísa. Aura – a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Barracuda, 2006.
ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

quarta-feira, maio 30, 2007

O Estado da Arte sem Arte, em Lygia Clark


Lygia Clark, Cabeça coletiva, 1975.

A interface entre os planos estético, ético e político destaca o parentesco entre a experiência intelectual de Marcuse e a prática artística de Lygia Clark

por Aléxia Bretas

Contra a concepção marxista da arte como pura ideologia, Marcuse, em um de seus últimos ensaios, escreveria: "Toda a verdadeira obra de arte seria revolucionária, na medida em que subverta as formas dominantes da percepção e da compreensão, apresente uma acusação à realidade existente e deixe aparecer a imagem da libertação" (Marcuse, 2000, p. 13). Sem injustiça, de tal natureza é a prática artística de Lygia Clark. Intuitivamente solidária à premissa que admite o viés entre a arte e a política, seu trabalho investe no potencial emancipatório de uma dimensão estética transformada. Daí, já em 1968, ela afirmar: “Se eu fosse mais jovem, faria política” (Clark, 2006).

Clark – que teve uma iniciação relativamente tardia nas artes, aos 27 anos de idade – assina, com Ferreira Gullar e outros seis artistas, o Manifesto Neoconcreto, de 1959. Logo de saída, a expressão “neoconcreto” é apresentada como uma “tomada de posição” frente à arte “não-figurativa”, e particularmente à arte concreta, comprometida por uma “perigosa exacerbação racionalista” (Gullar in Clark, 2006). Dispostos a corrigirem os equívocos produzidos por uma noção mecanicista de construção, derivada de uma atitude cientificista, de extração gestáltica, os neoconcretos defendem o primado da obra sobre a teoria, reivindicando o privilégio da sensibilidade sobre a razão. E garantem: “Ou bem a profecia de uma total integração da arte na vida parece-nos possível (...), ou essa integração nos parece cada vez mais remota e a sua obra se nos mostra frustrada” (Gullar in Clark, 2006). Ao retomarem o projeto de dissolução da arte na vida propalado pelas primeiras vanguardas, figuras como Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis repõem o problema estético em nova chave, subvertendo as categorias de espaço, tempo, forma, estrutura e cor, em nome de uma experiência artística totalmente re-significada.



Lygia Clark, Superfície ondulada nº 5, 1955.


Que se recorde que de 1954 a 1956, Clark já havia realizado outras quatro exposições com o Grupo Frente – do qual faziam parte também Lygia Pape e Hélio Oiticica. Durante estes anos de pesquisa “geométrica” – em grande medida, inspirada em Mondrian –, os limites da representação pictórica são radicalmente esgarçados, pela tentativa, sempre renovada, de enfrentar a “crise do retângulo” com a superação da própria bidimensionalidade do quadro. No caso de Lygia Clark, as Superfícies Moduladas (1956-1958) correspondem à solução encontrada para o aparente esgotamento do plano e, vistas em retrospecto, representam seu primeiro passo para fora das fronteiras do objeto como tradicionalmente concebido.

Tanto que o estudo clarkiano da linha orgânica resulta na criação dos Casulos (1959) e, mais tarde, de suas célebres chapas de metal articuladas por dobradiças, a propósito, batizadas de Bichos (1960). A própria artista explica que tais “contra-relevos” ou “neo-objetos” são como um organismo vivo, “uma obra essencialmente ativa”. Ela continua: “Uma integração total, existencial, é estabelecida entre ele e nós. (...) Na realidade, trata-se de um diálogo em que o Bicho reagiu às estimulações do participante. [Portanto], esta relação entre obra e espectador – antigamente virtual – torna-se efetiva” (Clark, 2006). Ao colocar em xeque os protocolos da contemplação passiva, Lygia é pioneira em promover a participação do público como condição de possibilidade do próprio “acontecimento” artístico.



Lygia Clark, Bicho, 1960.


Em 1963, com a proposição Caminhando, a artista prossegue sua trajetória rumo à completa desmaterialização da obra de arte. Clark se justifica: “Se eu utilizo uma fita de Möebius para esta experiência, é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita-esquerda; avesso-direito etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (Clark, 2006). Em seguida, ela reconhece seu empenho em “criar um espaço-tempo novo, concreto – não apenas para mim mas para os outros” (Clark, 2006), e escreve ao amigo Hélio: “Para mim, o objeto, desde o Caminhando, perdeu o seu significado, e se ainda o utilizo é para que ele seja o mediador para a participação” (Clark; Oiticica, 1998, p. 61).



Lygia Clark, Caminhando, 1963.


Em seu afã de habilitar uma modalidade efetivamente “intersubjetiva” de apresentação, a artista opera uma verdadeira “revolução copernicana” no âmbito da recepção estética, priorizando a participação do espectador – isto é, a realização do próprio ato – sobre a duração ou a objetividade da obra, no sentido tradicional do termo – vide experiências como as Máscaras sensoriais (1967), O eu e o tu (1967), A casa é o corpo (1968), Camisa de força (1969) e Arquiteturas biológicas (1969). Até por isso, Lygia se situa, como ela mesma diz, em algum lugar “entre o artista e o sistema”.

Fabbrini observa: “O que a artista buscava era a constituição de um estado estético (‘o estado da arte sem arte’) que só ocorreria com a recuperação do corpo sensório. Por isso os suportes físicos das proposições construtivas não são obras artísticas, mas instrumentos de sensibilização: são pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador” (Fabbrini, 1991, pp. 103-4). Avatar de uma prática eminentemente estética, Clark investe na experimentação de um constructo espácio-temporal alternativo como “propedêutica” para um outro tipo de vivência política. Tanto que em 1968, em Paris, ela própria decretaria: “Somos os propositores: enterramos a ‘obra de arte’ como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação” (Clark, 2006).



Lygia Clark, Arquiteturas biológicas, 1969.


Não é decerto gratuito que, numa correspondência de outubro do mesmo ano, enviada do Rio, Hélio Oiticica recomende a leitura de Eros e civilização à amiga: “você deve ler isso pois tem muito a ver com seu pensamento” (Clark; Oiticica, 1998, p. 44). Que se recorde que, nesta obra, Marcuse formaliza a crítica ao princípio de realidade constituído – ou seja, ao princípio de desempenho –, defendendo, contra Freud, a possibilidade de uma civilização não-repressiva, mediada pela dimensão estética.

Este texto é parte integrante do trabalho "Sobre a proposta de um ethos estético não-repressivo: ressonâncias marcusianas em Lygia Clark e Hélio Oiticica", apresentado no Congresso Internacional Estéticas do Deslocamento, realizado de 15 a 18 de maio de 2007, em Belo Horizonte.

quinta-feira, março 01, 2007

Passagens, de Walter Benjamin

Walter Benjamin. Passagens. Edição alemã: Rolf Tiedemann. Organização da edição brasileira: Willi Bolle. Colaboração na organização da edição brasileira: Olgária Chain Féres Matos. Tradução do alemão: Irene Aron. Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão técnica: Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 1167 p.

Por Aléxia Bretas

Lançada em setembro último no Brasil, Passagens é a grande obra-prima póstuma do filósofo, crítico e ensaísta alemão Walter Benjamin. A expectativa, portanto, não é gratuita. Escrito entre 1927 e 1940, mas publicado somente em 1982 na Alemanha, seu projeto inacabado é composto por uma pletórica coletânea de esboços, notas e materiais agrupados por módulos temáticos e organizados em ordem alfabética, cujo propósito maior é apresentar a Paris do século XIX – “cidade de sonho” – como a capital do Capital.

Fruto da parceria da Editora UFMG com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, esta bem-cuidada edição brasileira traz posfácios de Willi Bolle e Olgária Matos, além de um “Glossário” com os principais termos utilizados por Benjamin (em alemão e português), e um “Léxico” de nomes, conceitos e instituições preparado com base na versão norte-americana. Ainda como inovação em relação ao original, este extenso volume de 1.167 páginas conta com um aparato de “Notas introdutórias” referente a cada um de seus textos principais: os “Exposés”, o conjunto de “Notas e materiais”, o arquivo “J – Baudelaire” e o “Primeiro esboço”. Para aqueles ainda não totalmente familiarizados com a arquitetura labiríntica e constitutivamente multiestratificada do trabalho, tais comentários contribuem bastante para a inteligilidade geral de seu conteúdo, expresso quase sempre de forma provisória e descontínua.

Até por isso, as Passagens podem ser lidas como uma espécie de work in progress a ser continuado ou “potenciado” por seus intérpretes. Rouanet, por exemplo, opta por realizar a montagem das “Notas e materiais” com base na planta do “Exposé” de “Paris, a capital do século XIX” (cf. Rouanet, 2000). Buck-Morss recorre à concepção benjaminiana de uma historiografia imagética, e desloca o estudo de uma filosofia material da modernidade do século XIX para o século XX (cf. Buck-Morss, 2002). Willi Bolle, por seu turno, reconstitui o projeto do autor a partir da apresentação da metrópole moderna como palco da história (cf. Bolle, 2000), e defende: “Apesar da importância de se conhecer o processo real de construção, não se pode excluir como menos valiosas as leituras do ângulo da ‘obra possível’” (Bolle, 2000, p. 60).

Não é à toa que as controvérsias em torno de uma das maiores polêmicas literárias do século XX mantém-se vivas até hoje. A começar pelo título escolhido para a obra inicialmente concebida como uma “feeria dialética”. Refletindo o caráter essencialmente polifônico de sua recepção, Das Passagen-Werk (1982); Parigi, Capitale del XIX Secolo (1986); Le Livre des Passages (1989) e The Arcades Project (1999) são algumas entre as principais traduções recebidas pela pesquisa que o próprio Benjamin, na maioria das vezes, se reporta como "Passagenarbeit" – portanto, “Trabalho das passagens”.

Apesar das declaradas intenções do autor em escrever, ainda em 1927, um artigo denominado “Passagens parisienses”, o organizador desta edição propõe uma outra solução para o título da obra em português. Ao optar pela supressão do adjetivo “parisienses”, ele argumenta que o termo “passagens” teria o mérito de tornar possível a remissão a um rico plexo semântico, válido em, pelo menos, três dimensões justapostas: a arquitetônica, como construções urbanas típicas da Paris do Segundo Império; a epocal, como a transição da Era das Revoluções (1789-1848) para a Era do Capital (1848-1914); e a metodológica, como forma de exposição de uma outra proposta historiográfica composta a partir de um móbile de fragmentos, imagens e citações.

Este texto corresponde à parte da resenha publicada pelo nono volume dos Cadernos de Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP.