sábado, julho 28, 2012

"Brincar outra vez"

"Enfim, esse estudo deveria investigar a grande lei que, além de todas as regras e ritmos individuais, rege o mundo da brincadeira em sua totalidade: a lei da repetição. Sabemos que a repetição é para a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá tanto prazer como "brincar outra vez". A obscura compulsão de repetição não é menos violenta nem menos astuta na brincadeira que no sexo. Não é por acaso que Freud acreditava ter descoberto nesse impulso um 'além do princípio do prazer'. Com efeito, toda experiência profunda deseja, insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e retorno, restauração de uma situação original, que foi seu ponto de partida. 'Tudo seria perfeito, se pudéssemos fazer as coisas duas vezes': a criança age segundo essas palavras de Goethe. Somente, ela não quer fazer a mesma coisas apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem e mil vezes. Não se trata apenas de assenhorar-se de experiências terríveis e primordiais pelo amortecimento gradual, pela invocação maliciosa, pela paródia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos. O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja esta a raiz mais profundo do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira , não é um 'fazer como se', mas 'fazer sempre de novo', é a transformação em hábito de uma experiência devastadora". BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 252-253.

"Uma vez só é nada"

"Isso possui, no erótico, as mais surpreendentes evidências. Enquanto um homem corteja uma mulher com a dúvida constante sobre seu assentimento, a satisfação só pode vir acompanhada dessa dúvida, isto é, como salvação, decisão. Contudo, mal ela se realiza nessa forma, num abrir e fechar de olhos pode tomar seu lugar um anseio novo e insuportável pela satisfação pura e simples. A primeira satisfação se consome na memória, mais ou menos na decisão, portanto, em sua função oposta à dúvida; ela se torna abstrata. Assim, esta única vez pode se tornar nula, comparada com a realização pura e absoluta. Por outro lado, porém, pode se desvalorizar também eroticamente como pura e absoluta. Por exemplo, quando uma aventura banal se nos afigura na memória muito próxima, brutal e repentinamente, e anulamos esta primeira vez, chamando-a de vez nenhuma, porque buscamos as linhas de fuga da expectativa para saber como a mulher se anula diante de nós como seu ponto de interseção. No Don Juan, o felizardo do amor, o segredo é como ele, com a rapidez do relâmpago conduz, em todas as suas aventuras, a decisão e a corte mais gentil, ao mesmo tempo, recupera, no êxtase, a expectativa e antecipa, na corte, a decisão. Esse 'de uma vez por todas' do prazer, esse entrelaçar dos tempos só pode ser expresso musicalmente. Don Juan exige música como lente ustória do amor". BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, Vol. 2. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 208.

quarta-feira, junho 06, 2012

Possibilidades

"Prefiro o cinema. Prefiro os gatos. Prefiro os carvalhos sobre o Warta. Prefiro Dickens a Dostoiévski. Prefiro-me gostando das pessoas do que amando a humanidade. Prefiro ter agulha e linha à mão. Prefiro a cor verde. Prefiro não achar que a razão é culpada de tudo. Prefiro as exceções. Prefiro sair mais cedo. Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos. Prefiro as velhas ilustrações ilustradas, Prefiro o ridículo de escrever poemas ao ridículo de não escrevê-los. Prefiro, no amor, os aniversários não marcados, para celebrá-los todos os dias. Prefiro os moralistas que nada me prometem. Prefiro a bondade astuta à confiante demais. Prefiro a terra à paisana. Prefiro os países conquistados aos conquistadores. Prefiro guardar certa reserva. Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem. Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais. Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas. Prefiro os cães sem a cauda cortada. Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros. Prefiro as gavetas. Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui e muitas coisas também não mencionadas. Prefiro os zeros soltos do que postos em fila para formar cifras. Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas. Prefiro bater na madeira. Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando. Prefiro ponderar a própria possibilidade do ser ter a sua razão". Wislawa Szymborska. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

segunda-feira, maio 07, 2012

Encontro

"No encontro, maravilha-me o fato de ter achado alguém que, com pinceladas sucessivas, sem falhas, conclui o quadro da minha fantasia; sou como um jogador cuja sorte não se desmente e faz com que ele ponha a mão na pequena peça que vem, já na primeira tentativa, completar o quebra-cabeça de seu desejo. É uma descoberta progressiva (e como que uma verificação) das afinidades, cumplicidades e intimidades que poderei manter eternamente (no meu modo de ver) com um outro, em via de tornar-se, assim, 'meu outro': estou inteiramente voltado para essa descoberta (e com ela estremeço)(...). A cada instante do encontro, descubro no outro um outro eu mesmo: Você gosta disso? Puxa, eu também! Você não gosta daquilo? Eu também não! (...) O Encontro faz com que o sujeito amoroso (já seduzido) experimente o atordoamento de um acaso sobrenatural: o amor pertence à ordem (dionisíaca) do lance de dados". BARTHES, Roland. "Encontro", in: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.137-138.

sexta-feira, abril 20, 2012

O Divertimento Japonês de Proust

"E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonice me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas -- e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota -- se haviam anulado ou então, adormecidas, tinham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, guardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação. (...) E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque no Sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidades e jardins, de minha taça de chá". PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, pp. 73-74.

quinta-feira, abril 19, 2012

A Filha do Sonho

"Às vezes, como nasceu Eva de uma costela de Adão, nascia uma mulher, durante meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Oriunda do prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela que me oferecia. Meu corpo, que sentia no dela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava. O resto dos humanos se me afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minha face estava ainda quente de seu beijo e meus membros doloridos pelo peso de seu corpo. Se, como às vezes acontecia, apresentava os traços de alguma mulher a quem conhecera na vida, ia dedicar-me inteiramente a este fim: encontrá-la, tal como os que empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada. Pouco a pouco sua lembrança se dissipava, e eu esquecia a filha de meu sonho". PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Ed. Globo, 2006, p. 22.

sexta-feira, abril 13, 2012

Sonhos, lugar incomum

"O território singular do sono e dos sonhos é o contrário do lugar (em) comum, o território noturno das quimeras incomunicáveis porque desafiam a razão e a linguagem comuns, o lugar do irracional tão perigosamente parecido com as fantásticas criações dos loucos, dos extravagentes e dos insensatos aos quais Descartes compara, na primeira de suas Meditações, as alucinações de seus sonhos". GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Entre sonho e vigília: quem sou eu?", posfácio de PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, p. 545-6.