VILÉM FLUSSER
Há pelos menos duas maneiras para se conseguir fama: ser glorioso e ser infame. (Isto é: havia tais maneiras antes da revolução dos meios de comunicação de massa. Atualmente há outras, mais eficientes). O importante é isto: tanto faz ser glorioso ou ser infame, já que glória e infâmia são reversíveis. A reversão, quando ocorre, é instrutiva. Permite julgar, não o homem famoso, mas o fenômeno da fama.
Há trinta anos a glória de Nero era esta: ter ele avançado, de um simples Lucius Domitius Nero, para Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus Imperator, ter aumentado o Império na Armênia e na Britânia, ter construído obras grandiosas e ter concedido à Grécia liberdade. A glória na sua infância era esta: ter matado sua mãe e vários outros parentes, ter perseguido os cristãos (leia-se judeus) e ter tocado lira enquanto Roma ardia. Atualmente a situação é outra. Aumentar impérios é infame, não glorioso. Construir obras grandiosas não é nem glorioso nem infame, é corriqueiro. Conceder liberdade é infame (já que a liberdade deve ser conquistada, não concedida, para ser liberdade). Matar sua mãe não é nem glorioso nem infame, mas é sintoma de psicopatologia. Perseguir judeus e cristãos é glorioso para uns, infame para outros. Mas tocar lira enquanto Roma arde, isto sim, é glorioso. Um happening de primeira categoria.
A glória independe dos fatos. Os fatos são estes: Roma pegou fogo por razões ignoradas em 64 d.C., e dois terços da cidade ficaram destruídos. Nero foi acusado injustamente de ter causado o fogo e desviou a acusação sobre os cristãos, já que estes contestavam o establishment. Os fatos não mencionam o violino, e o fogo nada tinha a ver com a morte de Nero (que morreu em 68). A glória se baseia, não em fatos, mas em lenda. Esta: enquanto Roma ardia, Nero tocava, e exclamando Qualis artifex pereo (Que grande artista morre comigo), morreu nas chamas. Esta a glória, e Tácito e Suetônio que se danem.
Esta a glória, porque modelo esplendoroso de arte pura, de arte efêmera, de arte conceitual, de antiarte, de improvisação, de living theater, de exposição autêntica, em suma: de superação da crise na qual se debatem as artes na atualidade. A pop-art, a arte fotográfica neo-realista, o movimento cinético e os acontecimentos experimentais em vão procuram aproximar-se da perfeição exemplificada por Nero. Imaginem a coisa transportada, mutadis mutandis, para o incêndio do edifício Andraus e terão idéia pálida das possibilidades inerentes em Nero. E depois julguem, não Nero, mas a atualidade.
Matéria publicada na Folha de S. Paulo, em 1972, e republicada no livro Ficções filosóficas, atualmente esgotado. Cf. FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998. pp. 153-4.
Um comentário:
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