Não, Don Juan não morreu sob uma mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada insensata do homem sadio provocando um deus que não existe. Mas acredito, principalmente, que na noite em que Don Juan estava esperando na casa de Ana, o Comendador não apareceu e o ímpio deve ter sentido, depois da meia-noite, a terrível amargura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento. Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como servivu a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem eloqüência e, como ele sabe, também sem profundidade.
Vejo Don Juan numa cela daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um alto diante desa imagem melancólica e radiante. O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível.
CAMUS, Albert. Donjuanismo. In: O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004. pp. 83-89.
2 comentários:
Olá!!
Teu blog é muito bom!!
E não é "mais um"... tem conteúdo.
Tu cita um texto de Camus... não sei o quanto você conhece desse autor, mas, me arrisco a perguntar se você sabe o nome da tese de doutoramento dele... só sei que era sobre Agostinho.
Parabéns pelo blog, e agradeço se responder. Meu e-mail: antoniopatativa@gmail.com
Abraços.
Olá, Antônio,
Fico feliz que você tenha gostado do blog. Pelo que consta, o título da tese de doutoramento do Camus era: “Métaphysique chrétienne et néoplatonisme entre Plotin e Saint Augustin”.
Abraços,
A.
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