quinta-feira, novembro 02, 2006
Chocolate e identidade
PRODUTOS COMO O KINDER OVO FAZEM UMA ANALOGIA PERFEITA COM A ESTRUTURA MENTAL DO HOMEM MODERNO
Slavoj Zizek
Um dos mais populares produtos de chocolate à venda em toda a Europa é o chamado "Kinder Surprise" (no Brasil, Kinder Ovo), ovos ocos feitos de chocolate e embrulhados em papel colorido: depois de desembrulhar o ovo, quebra-se a casca de chocolate e se descobre no interior um pequeno brinquedo plástico (ou pequenas partes com as quais se monta um brinquedo). A criança que compra esse ovo de chocolate em geral o desembrulha nervosamente e apenas quebra o chocolate, sem se importar em comê-lo, interessada somente no brinquedo em seu interior.
Esse apreciador de chocolate não é o exemplo perfeito do moto de Lacan "Eu o amo, mas inexplicavelmente amo alguma coisa em você mais do que você mesmo e portanto o destruo"? E, efetivamente, não é esse brinquedo o que Jacques Lacan chama de "l'objet petit" em seu sentido mais puro, o pequeno objeto que preenche um vazio central, o tesouro oculto, "agalma", no centro da coisa que desejamos?
Mais, menos
O vazio material no centro do ovo de chocolate representa a lacuna estrutural por conta da qual nenhum bem é "realmente aquilo", nenhum produto satisfaz a expectativa que desperta. O Kinder Ovo, portanto, oferece a fórmula para todos os produtos que prometem "mais" ("compre um reprodutor de DVD e ganhe 5 DVDs grátis" ou, numa forma ainda mais direta, mais da mesma coisa _"compre esta pasta de dente e ganhe 30% a mais, grátis"), para não falar no truque padrão da garrafa de Coca-Cola ("olhe no interior da tampa metálica e poderá descobrir que ganhou um prêmio, desde outra Coca até um carro zero quilômetro").
A função desse "mais" é preencher a falta de um "menos", compensar o fato de que, por definição, uma mercadoria nunca cumpre sua (fantasiosa) promessa. Em outras palavras, a mercadoria "verdadeira" definitiva seria aquela que não precisasse de qualquer suplemento, aquela que simplesmente cumprisse totalmente o que promete _"você recebe aquilo pelo que pagou, nem menos nem mais".
E não há uma clara homologia entre essa estrutura do produto e a estrutura do sujeito universal moderno? Os sujeitos, precisamente à medida que são sujeitos dos direitos humanos universais, também não funcionam como esses ovos de chocolate Kinder? Na França ainda é possível comprar um doce com o nome racista de "la tête du nègre" [cabeça de negro]: um bolo de chocolate em forma de bola, vazio no interior ("como uma cabeça de negro burro").
A resposta do humanista-universalista à "tête du nègre" não seria precisamente algo semelhante a um ovo Kinder? Como colocariam os ideólogos humanistas: podemos ser infinitamente diferentes _alguns são negros, outros brancos, alguns altos, outros baixos, alguns são mulheres, outros homens, alguns ricos, outros pobres etc. etc._, mas no fundo de nós existe o mesmo equivalente moral do brinquedo plástico, o mesmo "je ne sais quoi", um X indefinível que de certa forma representa a dignidade compartilhada por todos os seres humanos.
Citando "Our Posthuman Future" (Nosso Futuro Pós-Humano, ed. Farrar, Straus & Giroux), de Francis Fukuyama: "O que a exigência do reconhecimento de igualdade implica é que, ao removermos todas as características contingentes e acidentais de uma pessoa, resta no fundo uma qualidade essencialmente humana que é digna de um certo nível mínimo de respeito: chame-o de Fator X. Pele, cor, aparência, classe social e riqueza, sexo, antecedentes culturais e até os talentos naturais de uma pessoa são todos acidentes de nascimento relegados à classe das características não essenciais. (...) Mas no reino político somos solicitados a respeitar as pessoas igualmente com base em sua posse do Fator X".
X misterioso
Assim, tratando-se de seres humanos, pode ser um chocolate branco, um chocolate ao leite padrão, um escuro, com ou sem nozes ou uvas passas no interior, há sempre o mesmo brinquedo plástico (em contraste com os ovos Kinder, que são iguais por fora, mas cada um tem um brinquedo diferente oculto no interior). E, resumindo a história, o que Fukuyama teme é que, se interferirmos muito na produção do ovo de chocolate, como poderemos gerar um ovo sem o brinquedo plástico no interior? Fukuyama está bastante certo ao enfatizar que é crucial percebermos nossas propriedades "naturais" como uma questão de contingência e sorte: se meu vizinho é mais belo ou mais inteligente que eu, é porque ele teve a sorte de nascer assim, e nem mesmo seus pais poderiam ter planejado isso. O paradoxo filosófico é que, se removermos esse elemento casual da sorte, se nossas propriedades "naturais" forem controladas e reguladas pela biogenética e outras manipulações científicas, perderemos o Fator X.
É claro que o brinquedo plástico oculto pode receber um viés ideológico específico, como a idéia de que, depois de nos livrarmos do chocolate em todas as suas variações étnicas, sempre encontraremos um americano (mesmo que o brinquedo seja, com toda a probabilidade, feito na China): "Lá no fundo, todos queremos ser americanos". Esse X misterioso, o tesouro interno de nosso ser, também pode se revelar como um invasor alienígena, até mesmo uma monstruosidade excremental.
Excremento íntimo
A associação anal aqui é totalmente justificada: a aparência imediata do interior é uma merda amorfa. A criança que dá sua merda como presente está de certa maneira dando o equivalente imediato de seu Fator X.
A conhecida identificação por Freud do excremento como a forma primordial de presente, do objeto interno mais profundo que a criança dá a seus pais, não é portanto tão ingênua quanto pode parecer: a questão muitas vezes desprezada é que esse pedaço de mim oferecido ao Outro oscila radicalmente entre o sublime e não o ridículo, mas precisamente o excremental.
Esse é o motivo por que, para Lacan, uma das características que distinguem o homem dos animais é que, entre os seres humanos, livrar-se da merda representa um problema: não porque ela cheire mal, mas porque saiu de nosso interior mais profundo. Temos vergonha da merda porque nela expomos/exteriorizamos nossa intimidade mais profunda.
Os animais não têm problema com isso porque não têm um "interior" como os seres humanos. Aqui devemos nos referir a Otto Weininger, que designa a lava vulcânica como "der Dreck der Erde". Ela vem do interior do corpo, e esse interior é maligno, criminoso: "Das Innere des Koerpers ist sehr verbrecherisch". Aqui encontramos a mesma ambiguidade especulativa que há com o pênis, órgão de urinação e procriação: quando o nosso mais profundo é diretamente exteriorizado, o resultado é repugnante.
Essa merda exteriorizada é o equivalente exato do monstro alienígena que coloniza o corpo humano, penetrando-o e dominando-o por dentro, e que, no momento culminante de um filme de horror-ficção-científica, brota do corpo através da boca ou diretamente do peito. Talvez ainda mais exemplar que o "Alien" (1979) de Ridley Scott seja "Hidden" (1987), de Jack Sholder, em que a criatura alienígena em forma de verme extraída do corpo no final do filme evoca diretamente associações anais: uma merda gigantesca, já que o alienígena obriga os seres humanos que ele penetra a comer vorazmente e a regurgitar de maneira repugnante e embaraçosa.
O Fator X não apenas garante a identidade subjacente de sujeitos diferentes, mas também a continuação da identidade do mesmo sujeito. Vinte anos atrás, a "National Geographic" publicou a famosa foto de uma mulher afegã com reluzentes olhos amarelos; em 2001 a mesma mulher foi identificada no Afeganistão, embora seu rosto esteja mais escuro, a pele enrugada e gasta pela vida difícil e o trabalho duro, seus olhos intensos foram imediatamente reconhecíveis como o fator de continuidade.
No entanto, há um problema com esse Fator X que nos torna iguais, apesar de nossas diferenças: por baixo da profunda percepção humanista de que "no fundo de nós mesmos somos todos iguais, os mesmos seres humanos vulneráveis", espreita a cínica declaração: "Por que se incomodar em combater as diferenças superficiais, se no fundo já somos iguais?" _como o proverbial milionário que pateticamente descobre que tem as mesmas paixões, os mesmos medos e amores que um mendigo.
Diferenças
A conhecida série animada de grande sucesso "The Land Before Time", produzida por Steven Spielberg, oferece o que talvez seja a mais clara articulação dessa ideologia do Fator X. A mesma mensagem é repetida diversas vezes: somos todos diferentes _alguns grandes, alguns pequenos, alguns sabem lutar, outros sabem voar..._, mas deveríamos aprender a conviver com essas diferenças, a percebê-las como algo que enriquece nossas vidas.
Lembrem-se do eco dessa atitude nos recentes relatos de como os prisioneiros da Al Qaeda são tratados em Guantánamo: eles recebem comida adequada a suas necessidades culturais e religiosas específicas, têm permissão para rezar...
Por fora, todos parecemos diferentes, mas lá dentro somos todos iguais, indivíduos assustados e perdidos no mundo, necessitando da ajuda dos outros. Em uma das canções, os grandes dinossauros maus cantam sobre como os grandes podem quebrar todas as regras, comportar-se mal, esmagar os pequenos indefesos: "Quando você é grande/ Pode empurrar todos os pequenos/ Eles olham para cima/ Enquanto você olha para baixo/ .../ As coisas são melhores quando você é grande/ Todas as regras que os adultos fizeram/ Não se aplicam a você".
'Crianças como nós'
A resposta dos pequenos oprimidos na canção seguinte não é como se poderia esperar combater os grandes, mas compreender que, por baixo de sua aparência prepotente, não são diferentes de nós, secretamente temerosos, com seus próprios problemas: "Eles têm sentimentos/ Assim como nós/ Eles também têm problemas./ Nós pensamos que porque eles são grandes/ Eles não têm, mas têm/ Eles são mais barulhentos e mais fortes/ E fazem mais confusão/ Mas lá no fundo/ Eu acho que são crianças como nós".
A conclusão óbvia é o elogio das diferenças: "É preciso todos os tipos/ Para fazer um mundo/ Baixos e altos/ Grandes e pequenos/ Para encher esse lindo planeta/ de amor e alegria./ Para torná-lo ótimo de viver/ Amanhã e no dia seguinte./ É preciso todos os tipos/ Sem a menor dúvida/ Tipos burros e inteligentes/ Tipos de todos os tamanhos/ Para fazer todas as coisas/ Que precisam ser feitas/ Para tornar nossa vida divertida".
Limites
O problema, é claro, é: até onde nós vamos aqui? É preciso todos os tipos também bons e violentos, pobres e ricos, vítimas e torturadores? A referência ao reino dos dinossauros é especialmente ambígua aqui, com seu caráter brutal de espécies animais devorando-se entre si _essa também é uma das coisas que "precisam ser feitas para tornar nossa vida divertida"? A própria incoerência dessa visão da "terra antes do tempo" é portanto testemunha de como a mensagem da colaboração-nas-diferenças é ideologia no sentido mais puro.
Por quê? Porque qualquer noção de um antagonismo "vertical" que atravesse o corpo social é censurada, substituída ou traduzida para a noção totalmente diversa de diferenças "horizontais", com as quais temos de aprender a conviver porque são complementares. E nossa tarefa hoje é exatamente reafirmar a noção de um antagonismo inerente que constitui o campo social: desenterrar o núcleo antagônico no que parece uma rede de diferenças "horizontais".
Assim, voltando ao ponto de partida: a lição final é que nós todos temos "cabeças de negro", com um buraco no centro, e aquilo a que nos referimos como o núcleo fixo de nossa identidade é exatamente mais um brinquedo plástico. A verdadeira "luta de idéias" é a luta pelo brinquedo plástico que preencherá o vazio central.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 22/12/2002
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