quarta-feira, julho 14, 2010

Do Trágico ao Abjeto


Máscara de Dionísio, Myrina, século II a.C.

Se não fosse pela criação do resplendente panteão de deuses olímpicos, de que outra maneira poderiam os gregos – povo tão singularmente propício ao sofrimento –, suportar os horrores da existência humana? A pergunta é lançada pelo jovem Nietzsche, que, pelo viés da sabedoria de Sileno, toca em um ponto fundamental para a compreensão da essência mesma do trágico, da Grécia antiga à contemporaneidade: a questão do tratamento da dor e do sofrimento pelas representações artísticas.

Aléxia Cruz Bretas

Contra Platão, Aristóteles escreve em sua Poética sobre o prazer proporcionado pela mímesis, observando, a respeito da pintura, que temos prazer em contemplar coisas cuja visão é digna de pena quando sua imagem é reproduzida com perfeição – como no caso de bichos desprezíveis e cadáveres.

Já com relação às artes dramáticas, o filósofo deixa registrada sua canônica definição de tragédia, caracterizando-a como uma representação de uma ação nobre, de certa extensão, em linguagem elevada, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando piedade (éleos) e temor (fóbos), opera a catarse própria dessas emoções. Portanto, sob a perspectiva da teoria poética clássica, o abalo provocado pela apresentação de cenas chocantes, que geram compaixão e medo, enseja consequências tão prazerosas quanto úteis: purifica as emoções do espectador, reconciliando-o, ao mesmo tempo, com a realidade circundante.

Entretanto, é somente no fim do século XVII que a hegemonia da tríade belo-bom-verdadeiro viria a ser posta em questão, com um notável aumento do interesse pela psicologia da recepção das obras de arte. Neste sentido, a publicação, em 1694, da tradução de Boileau do tratado Do sublime, atribuído ao pseudo-Longino, lançaria as bases para uma nova estética, cujo epicentro seria exatamente a prolífera noção de “sublime”.


Caspar David Friedrich, Monge à beira-mar, 1809.

Se até então o foco da reflexão artística estivera concentrado em aspectos relativos às regras da composição, agora todas as atenções se voltam para o estudo dos sentimentos compostos. Fenômenos como o prazer advindo da contemplação de aparições asquerosas, do feio e de seres monstruosos passam a ser objeto de fecundos debates.

Com isso, opera-se uma radical mudança de paradigma, mediante a virada de uma estética calcada na primazia dos princípios racionais para uma outra centrada na imediatez e na emotividade. Ao invés da análise da imitação e das semelhanças entre o original e a cópia, a ênfase passa a recair sobre o espectador, bem como sobre a relação entre os estímulos e as emoções desencadeadas por eles.

Como resultado, surgem, a partir de meados do século XVIII, duas principais modalidades de “sublime”, cada uma das quais orientada por um vetor específico: são elas o “sublime” sensualista de Burke e o “sublime” espiritualista de Mendelssohn. De certo modo, pode-se dizer que ambas as tendências privilegiam o papel da dor, do sofrimento e dos sentimentos compostos na recepção das obras de arte, em suas múltiplas formas.

Teórico-chave da estética no século XVIII, Edmund Burke apresenta o sublime como um afeto em larga medida alheio aos protocolos da apreensão conceitual, precisamente por se constituir como a manifestação do ilimitado. O autor elabora sua teoria com base em uma distinção fundamental entre o prazer (pleasure) simples ou positivo e o prazer ou deleite (delight) relativo, proveniente da diminuição da dor, do perigo ou de um sofrimento qualquer.

Em linhas gerais, Burke caracteriza o sublime como fenômeno decorrente de um abalo de muita intensidade, capaz de provocar o que chama de deleite ou “horror deleitoso”. Para isso, a participação empática do espectador é condição sine qua non, já que a perda de controle diante de uma força superior que atinja e arrebate o indivíduo é requisito fundamental para a consumação da experiência artística em toda a sua plenitude.

Enquanto para Burke, a categoria do sublime indica algo “inominável”, para os teóricos alemães ele é um conceito entendido como manifestação do infinito, isto é, de uma entidade superior e até divina. Para Moses Mendelssohn, em particular, tal sentimento de natureza mista surge na apreensão de objetos cuja grandeza não poder ser abarcada de uma só vez pelos sentidos. Ou seja, há uma inadequação entre a obra contemplada e nossa limitada capacidade de percepção, tanto sensível quanto intelectual.

Por isso, o sublime se configura como o grau mais elevado do poético. Indissoluvelmente vinculado ao império das emoções heterogêneas – as quais tendem a nos impressionar mais –, o grande ideal da arte é, para Mendelssohn, o abalo prazeroso de seu espectador, conforme se verifica, por exemplo, nas telas de Caspar David Friedrich, William Turner e John Constable, entre outros.

Para evitar, quer a monotonia, quer o simples asco, a arte se volta então para a representação do que há de mais chocante, oscilando pendularmente entre os extremos do grito de dor e do silêncio absoluto: reflexo da consciência da insuperável incapacidade de abarcar o mundo de modo conceitualmente articulado.

Neste sentido, são dignas de nota as ideias de Lessing sobre o tema. Em resposta ao classicismo de Winckelmann, o autor redige seu Lacoonte a fim de explicitar as especificidades da pintura e da poesia, detendo-se na análise do grupo escultórico de mesmo nome para apresentar os fundamentos de sua pregnante concepção estética.


Grupo escultórico do Laocoonte, Vaticano.

Segundo ele, o artista plástico deve evitar sumariamente a representação do grito, do grotesco escancaramento da boca, sob o risco de ultrapassar, com a descuidada exposição da carne, ou das “entranhas”, os limites da própria arte. Para Lessing, a configuração da boca aberta redunda na saída do campo estético, isto é, na impossibilidade do exercício do pensamento ao ser subjugado pela própria realidade imediata. Reenviando ao texto de Mendelssohn, o autor é enfático: “Os sentimentos de asco são sempre natureza”.

Esta ideia, por sinal, revela-se de suma importância para o entedimento de um certo “deslizamento” semântico da noção do “sublime” – prevalente, sobretudo, entre os românticos – em direção a uma categoria crucial para a compreensão da representação da dor e do sofrimento na arte contemporânea: o abjeto. Se o trágico aspira à catarse e o sublime remete ao espiritual, o abjeto se volta para a materialidade do corpo. Não por acaso, a pele, os orifícios, fluidos e dejetos são os suportes privilegiados deste modo de apresentação do “asqueroso”.

Formulada por Julia Kristeva no ensaio Poderes do horror, de 1980, a categoria do abjeto deriva da psicanálise e da teoria literária, dirigindo-se, com Freud, Bataille e Lévi-Strauss, ao campo caótico e pré-simbólico da natureza – locus por excelência do animal e, de forma paradigmática, do cadáver. Como manifestação do que há de mais primitivo em nossa economia psíquica, o abjeto nasce de um recalque originário anterior ao próprio ego individualizado – como, por exemplo, no satanismo de Lautréamont, no teatro de Artaud e nas metamorfoses de Kafka.


Patricia Piccinini, We are family, 2003.

Em tempo, Kristeva, aristotelicamente, vislumbra na arte uma das modalidades de purificação do abjeto: a sua aparição teria o papel de controlar sua força. Contra Mendelssohn, Lessing e Kant, que percebiam na representação de objetos repugnantes ou asquerosos um tema completamente estranho à arte por ser “sempre natureza”, a autora mostra que o que importa agora é precisamente o contrário: a apresentação da realidade – que bloqueia nossa imaginação, mas fomenta o pensamento.

A título de ilustração, cabe citar, aqui, a exposição de renome internacional concebida pelo médico Gunther von Hagen, Mundos do corpo (Körperwelten). A mostra exibe “esculturas” feitas de cadáveres humanos submetidos ao processo de “plastinação” e apresentados como “obra de arte”. Fornecidos pela polícia chinesa e de países da ex-União Soviética, a famosa e não menos polêmica exposição dos corpos vem demonstrar, de maneira bastante eloquente, a relação espúria entre esta espécie de “arte abjeta” e a radicalização da figura política do homo sacer em nossa época.

Em conclusão, podemos afirmar que, contemporaneamente, a espetacularização da dor não redunda mais em uma kátharsis com a participação empática do espectador, mas procede a partir de um olhar educado pela percepção do sublime dos séculos XVIII e XIX, culminando com o avesso da identificação piedosa, ou seja, com a pura dessubjetificação sem o momento da fusão extática.

Neste caso, a catarse só pode ser pensada como escritura do corpo, isto é, enquanto comunhão regressiva com o proto-eu simbólico anterior ao lógos – que autores como Adorno se referirão como o “animal” ou o “inumano”. As fotomontagens de Joel Peter Witikin, as criaturas híbridas de Patricia Piccinini e algumas esculturas de Louise Bourgeois são apenas três de suas muitas facetas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Arte Retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro.
LESSING, G. E. Lacoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998.
LONGINO. Do sublime. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005.

Um comentário:

Viviane disse...

Olá, professora.
Achei seu blog quando procurava pelo conceito de abjeto.
Você saberia me explicar a diferença fundamental entre grotesco e abjeto?
Grata.
Viviane Dantas