Em seu livro “Politique de la Littérature” (Política da literatura), o sr. escreve : “A expressão ‘política da literatura’ implica que a literatura faz política enquanto literatura”. Como a política da literatura se distingue do engajamento propriamente dito?
Jacques Rancière: A política da literatura se diferencia do engajamento dos escritores a serviço de uma causa e da interpretação que suas ficções podem dar das estruturas sociais e dos conflitos políticos. A política da literatura supõe que a literatura aja não propagando idéias ou representações, mas criando um novo tipo de “senso comum”, reconfigurando as formas do visível comum e as relações entre visibilidade e significações. Esta política é, pois, consubstancial a um estatuto da escritura, a seu modo de se posicionar, à forma de experiência sensível que ela relata, ao tipo de mundo comum que ela constrói com os que a lêem.
Essas questões não podem ser colocadas independentemente da questão da historicidade da literatura. A literatura, pois, não é um conceito trans-histórico reunindo todas as formas da arte de falar e de escrever desde o começo dos tempos. É um conceito que não tem mais que 200 anos. No século XVIII, a palavra “literatura” designava a prática do erudito, e não a arte dos escritores.
A noção moderna de literatura como prática da arte de escrever nasceu ao mesmo tempo que os conceitos modernos de arte e de estética, na época das revoluções democráticas da América e da França. A literatura é, assim, um regime da escritura que rompe com o universo hierarquizado das Belas Letras: nesse universo, os gêneros eram hierarquizados segundo a dignidade de seus temas, isto é, dos personagens que representavam; a poesia era definida antes de tudo como uma ação. A ação, como encadeamento de efeitos a partir de fins perseguidos, definia o universo dos indivíduos nobres, capazes de perseguir tais fins, por oposição à vida repetitiva das pessoas comuns. Enfim, a escritura era subordinada a um modelo de excelência que era o da palavra viva, isto é, da palavra daqueles que são capazes de fazer acontecer algo apenas pela palavra.
Tudo isso definia uma relação estreita entre as regras da excelência poética e o “gosto” de uma sociedade aristocrática. A literatura significa a ruína desse sistema: todos os temas são, a partir de então, susceptíveis de serem considerados poéticos, toda vida é digna de ser escrita; não há mais princípio de correspondência entra a dignidade dos personagens e a qualidade de expressão. A palavra oral perde sua função de norma em benefício do livro escrito, que se dirige a qualquer um ao acaso e não mais a um público escolhido.
Nesse sentido, a literatura põe em prática a democracia da letra errante denunciada por Platão: a palavra que vai falar a qualquer um, não controlando seu trajeto e não selecionando seus destinatários. A democracia literária faz qualquer pessoa sentir formas de sentimento e de expressão reservadas às pessoas escolhidas. Ela contribui, assim, a uma democracia, que é a da circulação e da apropriação aleatória das formas de vida e de experiência vivida, das maneiras de falar, de sentir e de desejar.
Esta democratização é própria à literatura como tal, ela é independente das idéias políticas dos escritores. Estes descrevem de bom grado as agruras que sucedem às pessoas do povo quando se põem a ler romances. Mas os romances nos quais eles o fazem amplificam mais ainda esta oferta generalizada de formas de vida e de modos de sentir.
Texto publicado originalmente em Trópico. Para ler a entrevista na íntegra, clique no título deste post.
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