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Lygia Clark, Cabeça coletiva, 1975.
A interface entre os planos estético, ético e político destaca o parentesco entre a experiência intelectual de Marcuse e a prática artística de Lygia Clark
por Aléxia Bretas
Contra a concepção marxista da arte como pura ideologia, Marcuse, em um de seus últimos ensaios, escreveria: "Toda a verdadeira obra de arte seria revolucionária, na medida em que subverta as formas dominantes da percepção e da compreensão, apresente uma acusação à realidade existente e deixe aparecer a imagem da libertação" (Marcuse, 2000, p. 13). Sem injustiça, de tal natureza é a prática artística de Lygia Clark. Intuitivamente solidária à premissa que admite o viés entre a arte e a política, seu trabalho investe no potencial emancipatório de uma dimensão estética transformada. Daí, já em 1968, ela afirmar: “Se eu fosse mais jovem, faria política” (Clark, 2006).
Clark – que teve uma iniciação relativamente tardia nas artes, aos 27 anos de idade – assina, com Ferreira Gullar e outros seis artistas, o Manifesto Neoconcreto, de 1959. Logo de saída, a expressão “neoconcreto” é apresentada como uma “tomada de posição” frente à arte “não-figurativa”, e particularmente à arte concreta, comprometida por uma “perigosa exacerbação racionalista” (Gullar in Clark, 2006). Dispostos a corrigirem os equívocos produzidos por uma noção mecanicista de construção, derivada de uma atitude cientificista, de extração gestáltica, os neoconcretos defendem o primado da obra sobre a teoria, reivindicando o privilégio da sensibilidade sobre a razão. E garantem: “Ou bem a profecia de uma total integração da arte na vida parece-nos possível (...), ou essa integração nos parece cada vez mais remota e a sua obra se nos mostra frustrada” (Gullar in Clark, 2006). Ao retomarem o projeto de dissolução da arte na vida propalado pelas primeiras vanguardas, figuras como Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis repõem o problema estético em nova chave, subvertendo as categorias de espaço, tempo, forma, estrutura e cor, em nome de uma experiência artística totalmente re-significada.
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Lygia Clark, Superfície ondulada nº 5, 1955.
Que se recorde que de 1954 a 1956, Clark já havia realizado outras quatro exposições com o Grupo Frente – do qual faziam parte também Lygia Pape e Hélio Oiticica. Durante estes anos de pesquisa “geométrica” – em grande medida, inspirada em Mondrian –, os limites da representação pictórica são radicalmente esgarçados, pela tentativa, sempre renovada, de enfrentar a “crise do retângulo” com a superação da própria bidimensionalidade do quadro. No caso de Lygia Clark, as Superfícies Moduladas (1956-1958) correspondem à solução encontrada para o aparente esgotamento do plano e, vistas em retrospecto, representam seu primeiro passo para fora das fronteiras do objeto como tradicionalmente concebido.
Tanto que o estudo clarkiano da linha orgânica resulta na criação dos Casulos (1959) e, mais tarde, de suas célebres chapas de metal articuladas por dobradiças, a propósito, batizadas de Bichos (1960). A própria artista explica que tais “contra-relevos” ou “neo-objetos” são como um organismo vivo, “uma obra essencialmente ativa”. Ela continua: “Uma integração total, existencial, é estabelecida entre ele e nós. (...) Na realidade, trata-se de um diálogo em que o Bicho reagiu às estimulações do participante. [Portanto], esta relação entre obra e espectador – antigamente virtual – torna-se efetiva” (Clark, 2006). Ao colocar em xeque os protocolos da contemplação passiva, Lygia é pioneira em promover a participação do público como condição de possibilidade do próprio “acontecimento” artístico.
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Lygia Clark, Bicho, 1960.
Em 1963, com a proposição Caminhando, a artista prossegue sua trajetória rumo à completa desmaterialização da obra de arte. Clark se justifica: “Se eu utilizo uma fita de Möebius para esta experiência, é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita-esquerda; avesso-direito etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (Clark, 2006). Em seguida, ela reconhece seu empenho em “criar um espaço-tempo novo, concreto – não apenas para mim mas para os outros” (Clark, 2006), e escreve ao amigo Hélio: “Para mim, o objeto, desde o Caminhando, perdeu o seu significado, e se ainda o utilizo é para que ele seja o mediador para a participação” (Clark; Oiticica, 1998, p. 61).
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Lygia Clark, Caminhando, 1963.
Em seu afã de habilitar uma modalidade efetivamente “intersubjetiva” de apresentação, a artista opera uma verdadeira “revolução copernicana” no âmbito da recepção estética, priorizando a participação do espectador – isto é, a realização do próprio ato – sobre a duração ou a objetividade da obra, no sentido tradicional do termo – vide experiências como as Máscaras sensoriais (1967), O eu e o tu (1967), A casa é o corpo (1968), Camisa de força (1969) e Arquiteturas biológicas (1969). Até por isso, Lygia se situa, como ela mesma diz, em algum lugar “entre o artista e o sistema”.
Fabbrini observa: “O que a artista buscava era a constituição de um estado estético (‘o estado da arte sem arte’) que só ocorreria com a recuperação do corpo sensório. Por isso os suportes físicos das proposições construtivas não são obras artísticas, mas instrumentos de sensibilização: são pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador” (Fabbrini, 1991, pp. 103-4). Avatar de uma prática eminentemente estética, Clark investe na experimentação de um constructo espácio-temporal alternativo como “propedêutica” para um outro tipo de vivência política. Tanto que em 1968, em Paris, ela própria decretaria: “Somos os propositores: enterramos a ‘obra de arte’ como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação” (Clark, 2006).
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Lygia Clark, Arquiteturas biológicas, 1969.
Não é decerto gratuito que, numa correspondência de outubro do mesmo ano, enviada do Rio, Hélio Oiticica recomende a leitura de Eros e civilização à amiga: “você deve ler isso pois tem muito a ver com seu pensamento” (Clark; Oiticica, 1998, p. 44). Que se recorde que, nesta obra, Marcuse formaliza a crítica ao princípio de realidade constituído – ou seja, ao princípio de desempenho –, defendendo, contra Freud, a possibilidade de uma civilização não-repressiva, mediada pela dimensão estética.
Este texto é parte integrante do trabalho "Sobre a proposta de um ethos estético não-repressivo: ressonâncias marcusianas em Lygia Clark e Hélio Oiticica", apresentado no Congresso Internacional Estéticas do Deslocamento, realizado de 15 a 18 de maio de 2007, em Belo Horizonte.