sexta-feira, abril 20, 2012
O Divertimento Japonês de Proust
"E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonice me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse; talvez porque, como depois tinha visto muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se desagregara; as formas -- e também a daquela conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob sua plissagem severa e devota -- se haviam anulado ou então, adormecidas, tinham perdido a força de expansão que lhes permitiria alcançar a consciência. Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, guardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.
(...)
E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque no Sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidades e jardins, de minha taça de chá".
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, pp. 73-74.
quinta-feira, abril 19, 2012
A Filha do Sonho
"Às vezes, como nasceu Eva de uma costela de Adão, nascia uma mulher, durante meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Oriunda do prazer que eu estava a ponto de experimentar, imaginava que era ela que me oferecia. Meu corpo, que sentia no dela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava. O resto dos humanos se me afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minha face estava ainda quente de seu beijo e meus membros doloridos pelo peso de seu corpo. Se, como às vezes acontecia, apresentava os traços de alguma mulher a quem conhecera na vida, ia dedicar-me inteiramente a este fim: encontrá-la, tal como os que empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada. Pouco a pouco sua lembrança se dissipava, e eu esquecia a filha de meu sonho". PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Ed. Globo, 2006, p. 22.
sexta-feira, abril 13, 2012
Sonhos, lugar incomum
"O território singular do sono e dos sonhos é o contrário do lugar (em) comum, o território noturno das quimeras incomunicáveis porque desafiam a razão e a linguagem comuns, o lugar do irracional tão perigosamente parecido com as fantásticas criações dos loucos, dos extravagentes e dos insensatos aos quais Descartes compara, na primeira de suas Meditações, as alucinações de seus sonhos".
GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Entre sonho e vigília: quem sou eu?", posfácio de PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006, p. 545-6.
quarta-feira, abril 11, 2012
Omelete de Amoras
"Era uma vez um rei que chamava de seu todo poder e todos os tesouros da Terra, mas, apesar disso, não se sentia feliz e se tornava mais melancólico de ano a ano. Então, um dia, mandou chamar seu cozinheiro particular e lhe disse: -- Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e me tens servido à mesa os pratos mais esplêndidos, e tenho por ti afeição. Porém, desejo agora uma última prova de seu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras tal qual saboreei há cinquenta anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso vizinho a oriente. Este acabou vencendo e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta escura. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma vovozinha, que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão e não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras. Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Quando mais tarde mandei procurá-la por todo o reino, não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubesse preparar a omelete de amoras. Se cumprires agora este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, então deverás morrer. -- Então o cozinheiro disse: -- Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Pois, na verdade, conheço o segredo da omelete de amoras e todos os ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sem dúvida, conheço o verso que se deve recitar ao bater os ovos e sei que a batedor feito de madeira de buxo deve ser sempre girado para a direita de modo que não nos tire, por fim, a recompensa de todo o esforço. Contudo, ó rei, terei de morrer. Pois, apesar disso, minha omelete não vos agradará ao paladar. Pois como haveria eu de temperá-la com tudo aquilo que, naquela época, nela desfrutastes: o perigo da batalha e a vigilância do perseguido, o calor do fogo e a doçura do descanso, o presente exótico e o futuro obscuro. -- Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou um momento e não muito tempo depois deve tê-lo destituído de seu serviço, rico e carregado de presentes".
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995, pp. 219-220.
terça-feira, abril 10, 2012
O Sonho de Heráclito
"Para os que estão em estado de vigília, há apenas um e mesmo mundo. No sono, cada um se volta para seu mundo privado".
Heráclito, Fragmento B89 da Edição Diels.
quarta-feira, abril 04, 2012
Madame Ariane, segundo pátio à esquerda
"O dia jaz cada manhã como uma camisa fresca sobre nossa cama; esse tecido incomparavelmente fino, incomparavelmente denso, de limpa profecia, assenta-nos como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende de que nós, ao acordar, saibamos como apanhá-lo".
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 64.
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