terça-feira, dezembro 12, 2006

Cultu®a também é cultura?


Happy Birthday Edvard Munch
Logo Google, hoje, dia 12/12/2006


Happy Birthday Piet Mondrian
Logo Google dia 7/12/2002


Happy Birthday Claude Manet
Logo Google dia 14/11/2001


Sobre o fenômeno da privatização da cultura, vale conferir o excelente livro de mesmo nome, lançado em novembro de 2006, pela Editora Boitempo e o SESC-SP. Resultado da tese de doutoramento da pesquisadora taiwanesa Chin-tao Wu, o estudo discute a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80. No verso, há um comentário assertivo de ninguém menos que Louise Bourgeois: "Eis um livro maravilhoso. Por favor, compre-o".

WU, Chin-tao.Privatização da cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80. São Paulo: Boitempo, 2006.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Absolut One-Dimensional Art






O projeto moderno é indissociável da crença de que as artes poderiam mudar o mundo.

A dissolução da arte na vida é a grande divisa do programa revolucionário que as vanguardas artísticas atualizaram de forma tão contundente. Desde então, a dimensão estética tem desempenhado a importante função de se rebelar contra a tirania do existente, reivindicando em seu lugar a chance de implementação de uma ordem menos repressiva, onde a liberdade poderia, quem sabe, fazer as pazes com a civilização. (Pelo menos, segundo Marcuse). Entretanto, o advento da sociedade de consumo -- notadamente a partir da década de 80, com a cooptação do potencial subversivo das artes pela forma-mercadoria -- tem propiciado as condições ideais para que o sentido da 'grande recusa' seja totalmente cancelado em nome das leis de mercado e suas irreversíveis(?) aspirações unidimensionalizantes. Absolut repressive dessublimation.

A atualidade de Adorno


Foto: High School Boogie-Woogie, de Jonathan Monk.

A imprensa alemã dedicou mais de uma centena de artigos ao filósofo Theodor W. Adorno nos dias que antecederam o centenário de seu nascimento, em 11/09/2003. Eles tratam de suas biografias, cartas, de aspectos de sua vida e obra. Os mais interessantes procuram responder à questão sobre o seu legado ao século 21.

O diário austríaco Die Presse lembra em "O pertubador" o que disse o filósofo alemão Peter Sloterdijk sobre o significado do dia 11 de setembro: que ele ficará na memória como a data de nascimento de Theodor Adorno e não como o dia da destruição do WTC. O diário escreve: "...Sloterdijk levantou a tese de de que o pensamento do filósofo, sociólogo e estético Adorno representa um acontecimento, do ponto de vista da história da cultura, muito mais importante do que a destruição das torres gêmeas e suas conseqüências militares e políticas. - Verdadeiramente uma tese arrojada, principalmente em uma era em que Adorno e sua filosofia parecem estar relegados aos historiadores da filosofia e autores de biografias.

Tudo o que se associa de imediato ao sociólogo - a crítica neomarxista ao capitalismo, a dialética negativa, os ataques à indústria cultural e o temor de um mundo burocratizado - parece não somente ultrapassado e empoeirado, como superado pela própria história... " A tese de Sloterdijk procura revidar essa impressão, e o diário vê razões suficientes para se resgatar do esquecimento o legado de um "pensador sutil e não-dogmático ". Nada mais atual que a obra do provocador Adorno, principalmente "para as novas gerações que já se enroscaram com toda empatia nas rodas do sistema".

(Para ler este e outros artigos publicados sobre Adorno, clique no título deste post).

O Exterminador da Pólis



ALÉXIA CRUZ BRETAS

Se o espaço da política corresponde, desde os gregos, ao âmbito da aparência, a sociedade do espetáculo (Debord, 1967) leva o significado do aparecer em público às raias do paroxismo. Não é casual que um ex-fisioculturista austríaco, filho de um assumido combatente nazista, exerça atualmente o cargo que, por sinal, já foi do também ator Ronald Reagan. Pergunta: o que teria levado o eleitorado californiano a acreditar que o exterminador do futuro poderia realizar um bom governo? Resposta: provavelmente o mesmo que levou Gandalf a crer que Frodo poderia vencer as forças malignas de Mordor, ou os neoconservadores norte-americanos a acreditarem que Bush poderia acabar com as armas de destruição em massa de Saddam. (Com a diferença que Frodo, de fato, venceu as forças malignas de Mordor).

Sex-Appeal do Inorgânico


Fernando Botero, Na praia.

Para Chanel, moda não pode ser responsabilizada por anorexia


da Folha de S.Paulo

A Chanel se manifestou ontem [dia 16/11] sobre a morte da modelo Ana Carolina Reston e disse que "a moda não é responsável pela anorexia". Um porta-voz da marca declarou que "lamentavelmente a anorexia é uma realidade, um verdadeiro problema da sociedade. Mas não há porque criar falsa polêmica. A moda não é responsável pela anorexia".
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Em todo caso, vale o comentário: afirmar que a moda é responsável pela anorexia é, num certo sentido, o mesmo que culpabilizar unilateralmente os filmes de ação pelos altos índices de violência entre os jovens, as novelas da Globo pela mediocrização da classe média, ou a aceleração da vida moderna pela terrível síndrome do pânico. Contudo, verdade seja dita: se as musas de Fellini ou Botero fossem, hoje, mais populares que as divas da Nívea ou Calvin Klein, as garotas-problema certamente não morreriam anoréxicas, mas, em vez disso, mergulhadas em opulentas e fatais banheiras de macarronada.

quinta-feira, novembro 09, 2006

O tempo é o espaço no qual se desenvolve o homem


Cartaz do Movimento Nacional pela Jornada Legal de 6 Horas e Aumento de Salários, da Oficina Popular de Serigrafia de Buenos Aires, apresentado na 27ª Bienal de SP.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Fetiche da mercadoria

Na sociedade fetichista não pode existir verdadeiramente um sujeito, porque o sujeito, na sociedade da mercadoria, é a própria mercadoria.

Anselm Jappe, Grupo Krisis

sexta-feira, novembro 03, 2006

Faço, Desfaço, Refaço Louise Bourgeois


Robert Mapplethorpe: Louise Bourgeois, 1982

"Louise Bourgeois: Faço, desfaço, refaço"

Texto da maravilhosa Louise Bourgeois, interpretação da não menos sublime Denise Stoklos. Sem dúvida, um dos espetáculos mais impressionantes, catárticos mesmo, que tive a sorte de assistir nos últimos 33 anos. Recomendo visceralmente.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Chocolate e identidade


PRODUTOS COMO O KINDER OVO FAZEM UMA ANALOGIA PERFEITA COM A ESTRUTURA MENTAL DO HOMEM MODERNO

Slavoj Zizek


Um dos mais populares produtos de chocolate à venda em toda a Europa é o chamado "Kinder Surprise" (no Brasil, Kinder Ovo), ovos ocos feitos de chocolate e embrulhados em papel colorido: depois de desembrulhar o ovo, quebra-se a casca de chocolate e se descobre no interior um pequeno brinquedo plástico (ou pequenas partes com as quais se monta um brinquedo). A criança que compra esse ovo de chocolate em geral o desembrulha nervosamente e apenas quebra o chocolate, sem se importar em comê-lo, interessada somente no brinquedo em seu interior.
Esse apreciador de chocolate não é o exemplo perfeito do moto de Lacan "Eu o amo, mas inexplicavelmente amo alguma coisa em você mais do que você mesmo e portanto o destruo"? E, efetivamente, não é esse brinquedo o que Jacques Lacan chama de "l'objet petit" em seu sentido mais puro, o pequeno objeto que preenche um vazio central, o tesouro oculto, "agalma", no centro da coisa que desejamos?
Mais, menos
O vazio material no centro do ovo de chocolate representa a lacuna estrutural por conta da qual nenhum bem é "realmente aquilo", nenhum produto satisfaz a expectativa que desperta. O Kinder Ovo, portanto, oferece a fórmula para todos os produtos que prometem "mais" ("compre um reprodutor de DVD e ganhe 5 DVDs grátis" ou, numa forma ainda mais direta, mais da mesma coisa _"compre esta pasta de dente e ganhe 30% a mais, grátis"), para não falar no truque padrão da garrafa de Coca-Cola ("olhe no interior da tampa metálica e poderá descobrir que ganhou um prêmio, desde outra Coca até um carro zero quilômetro").
A função desse "mais" é preencher a falta de um "menos", compensar o fato de que, por definição, uma mercadoria nunca cumpre sua (fantasiosa) promessa. Em outras palavras, a mercadoria "verdadeira" definitiva seria aquela que não precisasse de qualquer suplemento, aquela que simplesmente cumprisse totalmente o que promete _"você recebe aquilo pelo que pagou, nem menos nem mais".
E não há uma clara homologia entre essa estrutura do produto e a estrutura do sujeito universal moderno? Os sujeitos, precisamente à medida que são sujeitos dos direitos humanos universais, também não funcionam como esses ovos de chocolate Kinder? Na França ainda é possível comprar um doce com o nome racista de "la tête du nègre" [cabeça de negro]: um bolo de chocolate em forma de bola, vazio no interior ("como uma cabeça de negro burro").
A resposta do humanista-universalista à "tête du nègre" não seria precisamente algo semelhante a um ovo Kinder? Como colocariam os ideólogos humanistas: podemos ser infinitamente diferentes _alguns são negros, outros brancos, alguns altos, outros baixos, alguns são mulheres, outros homens, alguns ricos, outros pobres etc. etc._, mas no fundo de nós existe o mesmo equivalente moral do brinquedo plástico, o mesmo "je ne sais quoi", um X indefinível que de certa forma representa a dignidade compartilhada por todos os seres humanos.
Citando "Our Posthuman Future" (Nosso Futuro Pós-Humano, ed. Farrar, Straus & Giroux), de Francis Fukuyama: "O que a exigência do reconhecimento de igualdade implica é que, ao removermos todas as características contingentes e acidentais de uma pessoa, resta no fundo uma qualidade essencialmente humana que é digna de um certo nível mínimo de respeito: chame-o de Fator X. Pele, cor, aparência, classe social e riqueza, sexo, antecedentes culturais e até os talentos naturais de uma pessoa são todos acidentes de nascimento relegados à classe das características não essenciais. (...) Mas no reino político somos solicitados a respeitar as pessoas igualmente com base em sua posse do Fator X".
X misterioso
Assim, tratando-se de seres humanos, pode ser um chocolate branco, um chocolate ao leite padrão, um escuro, com ou sem nozes ou uvas passas no interior, há sempre o mesmo brinquedo plástico (em contraste com os ovos Kinder, que são iguais por fora, mas cada um tem um brinquedo diferente oculto no interior). E, resumindo a história, o que Fukuyama teme é que, se interferirmos muito na produção do ovo de chocolate, como poderemos gerar um ovo sem o brinquedo plástico no interior? Fukuyama está bastante certo ao enfatizar que é crucial percebermos nossas propriedades "naturais" como uma questão de contingência e sorte: se meu vizinho é mais belo ou mais inteligente que eu, é porque ele teve a sorte de nascer assim, e nem mesmo seus pais poderiam ter planejado isso. O paradoxo filosófico é que, se removermos esse elemento casual da sorte, se nossas propriedades "naturais" forem controladas e reguladas pela biogenética e outras manipulações científicas, perderemos o Fator X.
É claro que o brinquedo plástico oculto pode receber um viés ideológico específico, como a idéia de que, depois de nos livrarmos do chocolate em todas as suas variações étnicas, sempre encontraremos um americano (mesmo que o brinquedo seja, com toda a probabilidade, feito na China): "Lá no fundo, todos queremos ser americanos". Esse X misterioso, o tesouro interno de nosso ser, também pode se revelar como um invasor alienígena, até mesmo uma monstruosidade excremental.
Excremento íntimo
A associação anal aqui é totalmente justificada: a aparência imediata do interior é uma merda amorfa. A criança que dá sua merda como presente está de certa maneira dando o equivalente imediato de seu Fator X.
A conhecida identificação por Freud do excremento como a forma primordial de presente, do objeto interno mais profundo que a criança dá a seus pais, não é portanto tão ingênua quanto pode parecer: a questão muitas vezes desprezada é que esse pedaço de mim oferecido ao Outro oscila radicalmente entre o sublime e não o ridículo, mas precisamente o excremental.
Esse é o motivo por que, para Lacan, uma das características que distinguem o homem dos animais é que, entre os seres humanos, livrar-se da merda representa um problema: não porque ela cheire mal, mas porque saiu de nosso interior mais profundo. Temos vergonha da merda porque nela expomos/exteriorizamos nossa intimidade mais profunda.
Os animais não têm problema com isso porque não têm um "interior" como os seres humanos. Aqui devemos nos referir a Otto Weininger, que designa a lava vulcânica como "der Dreck der Erde". Ela vem do interior do corpo, e esse interior é maligno, criminoso: "Das Innere des Koerpers ist sehr verbrecherisch". Aqui encontramos a mesma ambiguidade especulativa que há com o pênis, órgão de urinação e procriação: quando o nosso mais profundo é diretamente exteriorizado, o resultado é repugnante.
Essa merda exteriorizada é o equivalente exato do monstro alienígena que coloniza o corpo humano, penetrando-o e dominando-o por dentro, e que, no momento culminante de um filme de horror-ficção-científica, brota do corpo através da boca ou diretamente do peito. Talvez ainda mais exemplar que o "Alien" (1979) de Ridley Scott seja "Hidden" (1987), de Jack Sholder, em que a criatura alienígena em forma de verme extraída do corpo no final do filme evoca diretamente associações anais: uma merda gigantesca, já que o alienígena obriga os seres humanos que ele penetra a comer vorazmente e a regurgitar de maneira repugnante e embaraçosa.
O Fator X não apenas garante a identidade subjacente de sujeitos diferentes, mas também a continuação da identidade do mesmo sujeito. Vinte anos atrás, a "National Geographic" publicou a famosa foto de uma mulher afegã com reluzentes olhos amarelos; em 2001 a mesma mulher foi identificada no Afeganistão, embora seu rosto esteja mais escuro, a pele enrugada e gasta pela vida difícil e o trabalho duro, seus olhos intensos foram imediatamente reconhecíveis como o fator de continuidade.
No entanto, há um problema com esse Fator X que nos torna iguais, apesar de nossas diferenças: por baixo da profunda percepção humanista de que "no fundo de nós mesmos somos todos iguais, os mesmos seres humanos vulneráveis", espreita a cínica declaração: "Por que se incomodar em combater as diferenças superficiais, se no fundo já somos iguais?" _como o proverbial milionário que pateticamente descobre que tem as mesmas paixões, os mesmos medos e amores que um mendigo.
Diferenças
A conhecida série animada de grande sucesso "The Land Before Time", produzida por Steven Spielberg, oferece o que talvez seja a mais clara articulação dessa ideologia do Fator X. A mesma mensagem é repetida diversas vezes: somos todos diferentes _alguns grandes, alguns pequenos, alguns sabem lutar, outros sabem voar..._, mas deveríamos aprender a conviver com essas diferenças, a percebê-las como algo que enriquece nossas vidas.
Lembrem-se do eco dessa atitude nos recentes relatos de como os prisioneiros da Al Qaeda são tratados em Guantánamo: eles recebem comida adequada a suas necessidades culturais e religiosas específicas, têm permissão para rezar...
Por fora, todos parecemos diferentes, mas lá dentro somos todos iguais, indivíduos assustados e perdidos no mundo, necessitando da ajuda dos outros. Em uma das canções, os grandes dinossauros maus cantam sobre como os grandes podem quebrar todas as regras, comportar-se mal, esmagar os pequenos indefesos: "Quando você é grande/ Pode empurrar todos os pequenos/ Eles olham para cima/ Enquanto você olha para baixo/ .../ As coisas são melhores quando você é grande/ Todas as regras que os adultos fizeram/ Não se aplicam a você".
'Crianças como nós'
A resposta dos pequenos oprimidos na canção seguinte não é como se poderia esperar combater os grandes, mas compreender que, por baixo de sua aparência prepotente, não são diferentes de nós, secretamente temerosos, com seus próprios problemas: "Eles têm sentimentos/ Assim como nós/ Eles também têm problemas./ Nós pensamos que porque eles são grandes/ Eles não têm, mas têm/ Eles são mais barulhentos e mais fortes/ E fazem mais confusão/ Mas lá no fundo/ Eu acho que são crianças como nós".
A conclusão óbvia é o elogio das diferenças: "É preciso todos os tipos/ Para fazer um mundo/ Baixos e altos/ Grandes e pequenos/ Para encher esse lindo planeta/ de amor e alegria./ Para torná-lo ótimo de viver/ Amanhã e no dia seguinte./ É preciso todos os tipos/ Sem a menor dúvida/ Tipos burros e inteligentes/ Tipos de todos os tamanhos/ Para fazer todas as coisas/ Que precisam ser feitas/ Para tornar nossa vida divertida".
Limites
O problema, é claro, é: até onde nós vamos aqui? É preciso todos os tipos também bons e violentos, pobres e ricos, vítimas e torturadores? A referência ao reino dos dinossauros é especialmente ambígua aqui, com seu caráter brutal de espécies animais devorando-se entre si _essa também é uma das coisas que "precisam ser feitas para tornar nossa vida divertida"? A própria incoerência dessa visão da "terra antes do tempo" é portanto testemunha de como a mensagem da colaboração-nas-diferenças é ideologia no sentido mais puro.
Por quê? Porque qualquer noção de um antagonismo "vertical" que atravesse o corpo social é censurada, substituída ou traduzida para a noção totalmente diversa de diferenças "horizontais", com as quais temos de aprender a conviver porque são complementares. E nossa tarefa hoje é exatamente reafirmar a noção de um antagonismo inerente que constitui o campo social: desenterrar o núcleo antagônico no que parece uma rede de diferenças "horizontais".
Assim, voltando ao ponto de partida: a lição final é que nós todos temos "cabeças de negro", com um buraco no centro, e aquilo a que nos referimos como o núcleo fixo de nossa identidade é exatamente mais um brinquedo plástico. A verdadeira "luta de idéias" é a luta pelo brinquedo plástico que preencherá o vazio central.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "O Mais Sublime dos Histéricos" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 22/12/2002

quarta-feira, novembro 01, 2006

O sonho da razão produz monstros


Francisco Goya, El sueño de la razón produce mostruos, 1799.

A possibilidade do impossível só pode ser sonhada


"A possibilidade do impossível, assim diz Adorno, die Möglichkeit des Unmöglichen. Não se deixar impressionar pela “unanimidade permanente dos filósofos”, isto é a primeira cumplicidade a romper, e pela qual é necessário começar a se preocupar se se quiser pensar um pouco. Banir o sonho sem o trair (ohne ihn zu verraten), eis o que é preciso, segundo Benjamin, o autor de um Traumkitsch : acordar, cuidar da vigília e da vigilância, permanecendo atento ao sentido, fiel aos ensinamentos e à lucidez de um sonho, preocupado com o que o sonho faz pensar, sobretudo quando nos faz pensar a possibilidade do impossível.

A possibilidade do impossível só pode ser sonhada, mas o pensamento, um pensamento inteiramente outro, sobre a relação entre o possível e o impossível - esse outro pensamento em busca do qual há tanto tempo aspiro e que, às vezes, me sufoca em minhas aulas e em minhas andanças - tem, talvez, mais afinidade com esse sonho do que a própria filosofia.

Seria necessário, mesmo acordado, continuar velando pelo sonho. Dessa possibilidade do impossível, e do que deveria ser feito para tentar pensá-la de modo diferente, fora do que dominou nossa tradição metafísica, tento, à minha maneira, extrair algumas conseqüências éticas, jurídicas e políticas".

DERRIDA, Jacques. Discurso de Frankfurt. (Para ler o texto na íntegra, clique no título deste post).

terça-feira, outubro 31, 2006

Que o pensamento viva pela ação


Lygia Clark, Máscaras sensoriais, 1967.

Somos os propositores: enterramos a 'obra de arte' como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação.
Lygia Clark


In: Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Catálogo da exposição organizada pelo Musée des Beaux-Arts de Nantes e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 25 de janeiro a 26 de março de 2006.

Coexistence





segunda-feira, outubro 30, 2006

Como filosofar junto

É possível filosofar junto?

Amantes Constantes



Paris 1968: pólis contemporânea

No filme Amantes Constantes, o ano presente em todos os movimentos contrários ao status quo

Olgária C.F.Matos


Paris é a cidade-fetiche, a capital dos êxtases revolucionários e das esperanças utópicas:1789, 1830, 1848, 1871, 1936, 1968, 1986, 2006. Paris dos asilos políticos, das barricadas e dos tratados de paz. Cidade da diplomacia, durante o tempo em que “a Europa falava francês”. Cidade Cultural, desde a fundação da Academia Francesa, sob Luís XIV, quando a literatura foi considerada um bem de utilidade pública. Por um gesto teatral, o rei promoveu a socialização da literatura e da língua francesa face ao latim predominante nas instituições de ensino, pesquisa e cultura, devendo ambas concorrerem para a “primavera do mundo e do espírito”. A literatura como empreendimento de um Estado Cultural procurava fazer de Paris uma “nova Atenas, uma nova Alexandria, uma nova Roma”.

Les Amants Réguliers (Amantes Constantes) de Philippe Garrel inscreve-se nessa forma romanesca, especificamente francesa, da política - a teatralidade. Sua referência mais próxima é a Revolução Francesa. Não por acaso a Comuna de 1968 foi denominada “segunda Revolução Francesa”: na fita, a “grande Revolução” aparece no sonho de François (Louis Garrel), o estudante se encontrando com camponeses durante o Ancien Régime, como em um palco. Mas o sentido dessa continuidade revolucionária explicita-se, ao mesmo tempo, pela ruptura. Com efeito, na tradição do Ocidente e na Revolução de 1789, trata-se da teatralização da violência na qual cena e morte, pensamento e sangue estão estreitamente ligados, a ação histórica é cênica para ter um sentido, e é ação violenta para ser real. Ser teatral significa repetir um modelo, ritualizar um mito. Para evitar a farsa, a Revolução Francesa de 1789, que extraiu seu roteiro da Roma Antiga, necessitou da violência, obrigada a manter a seriedade da representação com a morte e com o Terror - o que, de alguma forma, pode ser visto como a conseqüência de suas premissas teatrais. Consta que em 1968, o filósofo hegeliano Alexander Kojève exclamou: “Le sang n’a pas coulé, rien ne s’est donc passé”(o sangue não foi derramado, logo não aconteceu nada). A seriedade fundava-se no fato de dispensar a morte ou se expor ao risco de morrer.

De fato, o maio francês é um tempo disruptivo. Para o diretor Philippe Garrel, as ações são duplas, ocorrem nas ruas e nos interiores (nos estúdios, nas repúblicas estudantis). Isto quer dizer que o levante de maio não consistiu apenas em ativismo político, mas tinha alma, cada ação era, por assim dizer, acompanhada de reflexão. Por isso recusou a lógica do vencedor e do vencido, do traumatismo e da morte. Sua palavra de ordem dizia: “A morte é necessariamente uma contra-revolução.” Não pretendeu criar consensos pela coerção, não tomou, naquelas jornadas de maio, nenhum dos palácios governamentais. Ocupou o teatro do Odeon porque, dizia um grafite, “quando a Assembléia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros burgueses tornam-se Assembléias Nacionais”.

Na fita, a noite de 11 de maio - a da barricada - tem a sua dramaturgia. Dois estudantes são filmados de costas, capacete na cabeça, bastão nas mãos e, de vez em quando, como diretores de cena, indicam um carro para ser tombado e incendiado, uma ou outra pedra a ser atirada, em uma atmosfera dramática no contraste preto-e-branco da película. Quanto à polícia, são três CRS que também desempenham seu papel, ensaiam a direção do dispositivo de gás lacrimogêneo, estudam o melhor ângulo e depois acompanham com o olhar a linha imaginária desenhada pelos projéteis em sua trajetória. Quando o chefe da segurança pública de Paris chega ao campo de batalha, os policiais, informalmente distribuídos na rua, conversam à espera. Com a voz de comando para o ataque aos estudantes, o chefe de polícia coloca-se na linha de fogo, os policiais marcham a passos regulares e, com seus escudos e cassetetes lembram o filme Alexandre Nevski ou um quadro de Uccello. Deslocam-se com movimentos firmes e regulares, mantendo o ritmo constante e contido.Tudo se passa como em uma galanterie, tão presente no teatro de Corneille, misto de comportamento nobre e coragem pessoal, dos dois lados.

Ao escolher o preto-e-branco, o contraste extremado de luz e sombra,o mais importante não é a estética nouvelle vague, a atmosfera das fitas de Godard, como em Viver a Vida, em que Lilie (Clotilde Hesme) glosa Ana Karina; no filme, a incomunicabilidade e a solidão metafísica são as condições do humano que fazem de maio de 68 um “passo existencial”. Não que o filme seja nostálgico,promova autocrítica ou seja “romance de formação”. Não dá lições nem tira conclusões das derivas do tempo. Apenas não existe a figura do militante ensimesmado na revolução, investido da tarefa de mudar o mundo e que, em linha reta, caminharia para a revolução e para o Palácio de Inverno. François, fugindo da polícia, refugia-se em um prédio de apartamentos, sobe em desespero as escadarias até o último andar e, já ouvindo o rumor de seus perseguidores, bate a uma porta e diz “senhor, abra, sinto muito medo”.

Como nos contos de Tchekov, há vidas paralelas em uma mesma vida: a da política, a dos paraísos artificiais - o haxixe e o ópio. Baudelaire, portanto. Uma revolução acontecendo a céu aberto, outra dentro de cada um. Trágicas, as personagens do filme, em meio a ações consumadas, vivem os combates com a lúcida consciência que previne o ato de ser ausência de pensamento.Assim, quando um dos jovens está fugindo da polícia e um “ativista” repassa um coquetel molotov para que ele o atire na viatura de polícia onde se encontram os CRS, ele pensa que seu gesto vai matá-los, abandona a arma, se abstém. Como em L’Espoir, de André Malraux, de nada vale a “ética da responsabilidade” - a do “político” e sua “razão de estado”, a do aprendiz de assassino que deve matar em nome da causa ou do partido - , mas vale a dos princípios, a da moral individual e subjetiva que é, melhor dizendo, a autonomia.

Há também no filme a percepção do vazio das palavras de ordem das revoluções tradicionais, como a Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, que falam, como por procuração, de um proletariado genérico. A isso os jovens opõem o paradoxo de um proletariado que “trai a revolução proletária”, que “não se encontra na retaguarda ou na vanguarda do movimento”, como diz o jovem protagonista. Não há praticamente nenhuma menção a líderes revolucionários, sejam eles Marx, Engels, Trotski, Rosa Luxemburgo ou Guevara. Na solidão do ato individual, sem crença no poder transcendente de uma causa ou de um partido, a ação se desenvolve in media res. Até porque há o diálogo com o filme de Bertolucci, Os Sonhadores. Se este se passa quase que exclusivamente em um quarto de apartamento e na última cena os jovens vão à manifestação, Amantes Constantes dá continuidade - ao mesmo tempo em que inverte - à ação da fita que o antecedeu: já na abertura encontra-se o mesmo personagem - François - na passeata, a fita começa onde Os Sonhadores termina.

Continuidade a conferir sentido inédito ao maio francês, a fita mescla, como os próprios acontecimentos, o épico e o lírico. Não se trata, na fita, nem do maio, nem de um programa revolucionário, de oposição política, de reivindicações segundo o jogo do poder que as oposições tradicionais dominam. Eis por que o filme não se detém em ocupações de fábrica, em reuniões de operários com seus líderes, em partidos políticos. O que os jovens contestaram e reconheceram em suas palavras de ordem, nos grafites, em suas faixas e panfletos foi o mundo desencantado do bem-estar material sem nenhum ideal de espírito. Recusaram o mundo em prosa, ao qual substituíram pela utopia. Utopia também em sentido renovado.

Utopias são, tradicionalmente, épicas, o herói é o grupo, uma classe, a nação, uma totalidade coesa que pratica altos feitos e proezas. O sujeito utópico é “um todo indiviso”, todos os que merecem compor um coletivo harmônico - razão pela qual a esquerda dificilmente deixa de ser épica. Já o nosso universo é o de M. Jourdan, em O Burguês Fidalgo, de Molière. Ele falava em prosa sem o saber - o que significa que o cotidiano prosaico resulta em um mundo sem elaboração literária. O maio de 1968 foi ao mesmo tempo épico, lírico e garantiu os direitos da subjetividade. Contra o mundo sem sonho, sem poesia - de prosa -, o maio se fez. Na fita, as personagens são vidas a caminho - de pintores, escultores, poetas. O ópio nos traz de volta Baudelaire, os paraísos artificiais e o amor. Como no teatro de Corneille. A fita converte a prosa em poesia, ou então, uma sociedade em comunidade política - aquela que pensa na felicidade e que encontrou novas razões da vida em comum. Felicidade que é sempre a prova dos nove.

O filme apresenta uma imagem da revolução em que o gesto particular é sempre o primeiro e o último na álgebra do tempo. Reencena o decoro, o discreto, o silêncio. Cena que repõe as regras da dramaturgia clássica: unidade de espaço - Paris; unidade de tempo - o ano de 1968; unidade de ação - a revolução como princípio literário e estético. A literatura, tal com aparece no filme, explica a vida e não o contrário. Mesmo porque difícil não reconhecer instantâneos ficcionais nas tardes de maio, os gavroches de Os Miseráveis, as barricadas de 1848 de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, O Camponês de Paris, de Aragon, para não falar em pinturas e desenhos das barricadas de 1871.

Uma situação revolucionária, mostra Garrel, não se reconhece pela tomada do poder mas por sua potência de sonho, por sua excedência, excedência que é sua sobrevida. O que dá a conhecer que um momento transformador se encontra suspenso na espera. Espera do sentido da morte do jovem poeta, da loucura do artista que se traveste, como um tableau-vivant,em personagem de Delacroix - roupas encantadas de sultão, turbante oriental. O estrangeiro, como as jornadas de maio, são um convite à viagem. Nos muros, a inscrição: “As Mil e uma Noites estão nas ruas da cidade.”

O suicídio do poeta é teatral e trágico, e nos fala do desejo insensato de felicidade. Revolução sem causa final, o maio de Philippe Garret. Revivê-lo na ficção manifesta que nada está perdido para a história quando um acontecimento torna-se citável: “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Cada momento vivido transforma-se em uma citation à l’ordre du jour.”

Que se pense no movimento estudantil recente contra a “Lei do Primeiro Emprego”, considerada humilhante pelos franceses. Na contramão do presente e seu gosto pela realismo político, jovens estudantes barraram o caminho a mais uma supressão de direitos sociais e da dignidade de cada um. Desfilaram, aos milhares, apoiados por toda a população, da Bastilha ao Sacre Coeur. Cena primitiva das revoluções libertárias e emancipatórias, a Bastilha foi o teatro da queda do absolutismo monárquico, o Sacre Coeur, em Montmartre, o monumento fúnebre aos fuzilados da Comuna de 1871. Lá estenderam a faixa: “1789-2006”. Nascimento e enterro dos ideais republicanos de igualdade, liberdade, fraternidade e douceur de vivre, caso tivesse sido aprovada. Foram cunhados pela primeira Revolução Francesa e, periodicamente, Paris os comemora, fazendo-os renascer a cada aniversário.

1968 é o ano matricial presente em todos os movimentos que recusam a submissão ao status quo, Paris, o teatro da Ágora moderna.

Olgária C.F.Matos é filósofa e professora da USP

Matéria publicada pelo caderno de cultura do Estado de S. Paulo, em 15/10/2006.

domingo, outubro 29, 2006

Guaraná Power

Coletivo dinamarquês acusa Fundação Bienal de censura



Apresentada na Bienal de Veneza em 2003, a obra "Guaraná Power", do coletivo dinamarquês Superflex, foi selecionada pela curadoria da 27ª Bienal de São Paulo mas teve sua exibição vetada pela Fundação realizadora da mostra.

Tônico de sabor concentrado e propriedades energéticas, de grande sucesso na Europa, o Guaraná Power tem como função primeira a crítica ao monopólio do mercado e a suas conseqüências nas comunidades agricultoras. A partir de um estudo econômico da cidade de Maués, no Amazonas, detectou-se o impacto econômico da redução do preço das sementes de guaraná por parte das grandes indústrias. "Estabelecemos o valor de R$ 15 para o quilo de sementes, enquanto as indústrias pagam R$ 7", afirmou Bjornstjerne Christiansen, membro do Superflex, em entrevista à Folha de São Paulo. O projeto conta com o apoio da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Governo do Estado do Amazonas.

Impedidos de apresentar a obra – e tendo suas páginas do catálogo da mostra cobertas por tarjas pretas –, os dinamarqueses distribuíram o Guaraná Power, sem rótulo, em vernissages na Galeria Vermelho e Instituto Tomie Ohtake, além de pontos espalhados pela capital paulista. O coletivo Superflex já recebeu elogios do Ministro da Cultura Gilberto Gil em junho deste ano, ao apresentar no Brasil o projeto Free Beer ("cerveja livre"), cerveja cuja fórmula é licenciada em Creative Commons e permite que qualquer pessoa interessada possa fabricá-la ou aprimorá-la.

Na entrevista coletiva dos organizadores da Bienal, o presidente da Fundação Bienal, Manuel Francisco Pires da Costa, optou por, além de responsabilizar a assessoria jurídica, emitir sua opinião pessoal acerca da obra polêmica: "Eu jamais interferi no mérito das obras selecionadas. Aliás, a acho de muito mau gosto e, se não julguei, estou julgando agora. Foi o departamento jurídico da Bienal quem informou que essa obra não estava de acordo com as regras da legislação brasileira".

"O que eles sempre nos disseram é que isso [a referência à marca do guaraná Antarctica] poderia ser um problema, mas o presidente nunca nos deu respostas claras. Nossas obras sempre envolvem negociação, mas com ele tivemos as portas fechadas. Se eles olhassem como ficou a lata [diferente da criação original], não haveria problema legal", afirmou Jakob Fenger, um dos membros do coletivo, em entrevista para a Folha de São Paulo, em matéria que informa ainda: "Por meio de sua assessoria, a AmBev [fabricante do guaraná Antarctica] declarou não ver problema na obra. Diz não ter tido nenhum contato com o grupo".


O Superflex ainda distribuiu à imprensa, no dia da coletiva, o documento "A obra de arte que os brasileiros não terão permissão de ver na Bienal" . Nele, afirma-se que o "presidente da Fundação Bienal censurou um trabalho com reconhecimento internacional para o público brasileiro", que, segundo o texto divulgado, teria sido recusado "por não ser considerada uma 'atividade artística'".

A polêmica gerada pela Fundação Bienal fortaleceu a ação política do coletivo dinamarquês, tendo a censura gerado uma reação oposta à desejada. Foi grande o interesse público pelo modelo econômico e social do projeto Guaraná Power -- baseado no colaborativismo do software livre -- e positiva a repercussão do tema, exatamente onde interessa: no país fornecedor da matéria-prima de uma das bebidas estrangeiras mais famosas no exterior.

terça-feira, outubro 24, 2006

Toda Arte é Política


Hélio Oiticica, Tropicália, 1967

Às vésperas da Bienal, a curadora da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, fala sobre a mostra como "suspensão do cotidiano"

FOLHA - Você partiu de conceitos do Hélio Oiticica, dos anos 60 e 70, para criar o projeto desta Bienal. Em que medida, após a seleção de artistas e a montagem dos trabalhos, aquelas idéias podem ser observadas na produção contemporânea?

LAGNADO - Acho que a primeira vez que tive esse "feeling" foi quando entrei em contato com o trabalho do Rirkrit Tiravanija, porque eu via aquele sujeito fazendo proposições para se ficar junto, cozinhando e eu lembrava disso como uma proposição para "Parangolé-área". Então, foi aí que de fato comecei a achar que o Hélio tinha sido visionário, no sentido que, na década seguinte, em 80, quando ele morre, há a volta à pintura, de certa forma à mercantilização da arte, e isso ele nunca imaginava. Ele caminhava para algo mais voltado ao que fazia o Gordon Matta-Clark, de intervenções urbanas. Em meados dos anos 90, vimos proposições como a do Rirkrit serem usadas por vários artistas e ele se tornou um ícone, mas eu achava que o Hélio faltava nessa bibliografia. O que ele conceituou é o que está acontecendo e o primeiro fenômeno mais direto, que demonstra isso, é o Rirkrit.

FOLHA - Mas a arte, e nesse caso a Bienal, não pode ser como um espaço experimental de como viver junto? Não era isso, afinal, que o Hélio Oiticica propunha?

LAGNADO - Eu diria que o conceito de Hélio, mais próximo de sua pergunta, seria o de Crelazer. Acontece paralelamente com a preparação de "Éden" para Whitechapel (1969) e aí o artista já quer implantar uma nova prática de vida, pautada por uma percepção criativa da parte dos indivíduos e um forte sentido de participação coletiva. A "Cama-Bólide" é um dos exemplos mais emblemáticos; ou então sentir na planta do pé a textura da areia, a temperatura da água, o barulho da palha. Mas vamos combinar que estas experiências sensoriais faziam sentido dentro daquele contexto de descoberta do corpo livre, etc. Viver junto hoje não pode ser traduzido literalmente. Quais são nossas questões do agora? O último pronunciamento do papa? Não sei. O que resta do Crelazer é uma crítica à sociedade do espetáculo, a um lazer ativo e não passivo.

Matéria publicada pelo Caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo, do dia 1/10/2006.