sexta-feira, agosto 10, 2007

O Newton de Blake


William Blake, Isaac Newton, 1795, 46x60 cm, Tate Gallery, Londres

terça-feira, agosto 07, 2007

No Centro do Tempo

14 de Maio de 1905
Há um lugar em que o tempo fica parado. Pingos de chuva permanecem inertes no ar. Pêndulos de relógios estacionam no meio de seu ciclo. Caẽs empinam seus focinhos em uivos silenciosos. Pedestres estão congelados em ruas poeirentas, suas pernas erguidas como se amarradas por cordas. Os aromas de tâmaras, mangas, coentro, cominho estão suspensos no ar.

À medida que um viajante se aproxima deste lugar, vindo de qualquer parte, ele anda cada vez mais devagar. As batidas do seu coração ficam cada vez mais espaçadas, sua respiração arrefece, sua temperatura cai, seus pensamentos diminuem, até que ele atinge o centro morto e pára. Pois este é o centro do tempo. A partir deste lugar, o tempo se distancia em círculos concêntricos -- inerte no centro, lentamente ganhando velocidade à proporção que aumenta o diâmetro.

Quem faria uma peregrinação ao centro do tempo? Pais com seus filhos, e amantes.

E assim, no lugar onde o tempo fica parado, vêem-se pais agarrados a seus filhos, em um abraço petrificado que nunca se desfará. A linda filhinha de olhos azuis e cabelos loiros nunca parará de sorrir o sorriso que está sorrindo agora, nunca perderá este brilho róseo de suas bochechas, nunca ficará enrugada nem cansada, nunca se ferirá, nunca desaprenderá o que seus pais lhe ensinaram, nunca pensará pensamentos que seus pais desconheçam, nunca tomará contato com o mal, nunca dirá a seus pais que não os ama, nunca deixará seu quarto com vista para o mar, nunca deixará de tocar seus pais como está tocando agora.

E, no lugar onde o tempo fica parado, vêem-se amantes beijando nas sombras dos prédios, em um abraço petrificado que nunca se desfará. O amado nunca tirará os braços de onde estão agora, nunca devolverá o bracelete de memórias, nunca viajará para longe da pessoa amada, nunca se sacrificará expondo-se a perigos, nunca deixará de mostrar seu amor, nunca sentirá ciúmes, nunca se apaixonará por outra pessoa, nunca perderá a paixão que existe neste instante do tempo.

É importante considerar que estas estátuas são iluminadas apenas por uma brandíssima luz vermelha, pois a luz fica reduzida a quase nada no centro do tempo, suas vibrações reduzidas a ecos em vastos desfiladeiros, sua intensidade diminuída ao bilho tênue dos vaga-lumes.

Aqueles que não estão exatamente no centro morto de fato se movem, mas no ritmo das geleiras. Uma escovadela no cabelo pode levar um ano, um beijo pode levar mil anos. Enquanto um sorriso é retribuído, estações passam pelo mundo exterior. Enquanto uma criança é abraçada, pontes são contruídas. Enquanto uma pessoa diz adeus, cidades desmoronam e são esquecidas.

E aqueles que regressam ao mundo exterior... Crianças crescem rapidamente, esquecem o abraço de séculos de seus pais, que para elas durou não mais que alguns segundos. Crianças tornam-se adultos, vivem separadas dos pais, vivem em suas próprias casas, desenvolvem seus próprias maneiras de fazer as coisas, sentem dor, envelhecem. Crianças maldizem os pais por tentarem segurá-las para sempre, maldizem o tempo pelas rugas em suas próprias peles e vozes ásperas. Essas crianças agora envelhecidas também querem parar o tempo mas em um outro momento. Querem congelar seus próprios filhos no centro do tempo.

Amantes que regressam descobrem que os amigos partiram muito tempo antes. Afinal, vidas se passaram. Eles transitam em um mundo que não reconhecem. Amantes que regressam ainda se abraçam nas sombras dos prédios, mas agora seus abraços parecem vazios e solitários. Logo esquecem as promessas feitas para durar séculos, que para eles duraram apenas segundos. Sentem ciúmes mesmo entre estranhos, falam coisas terríveis entre si, perdem a paixão, distanciam-se, envelhecem e se isolam em um mundo que não conhecem.

Alguns dizem que não se deve chegar perto do centro do tempo. A vida é um barco de tristeza, mas é nobre viver a vida, e sem tempo não há vida. Outros discordam. Prefeririam viver uma eternidade de felicidade, mesmo que essa eternidade fosse fixa e petrificada, como uma borboleta instalada em uma redoma.

LIGHTMAN, Alan. Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pp. 67-71.

segunda-feira, agosto 06, 2007

O Sublime -- Caspar David Friedrich


Caspar David Friedrich, Monge no mar, 1809, óleo sobre tela, 110x172 cm, Nationalgalerie, Berlim


Caspar David Friedrich, Nuvens, c. 1820, óleo sobre tela, 18,3x24,5 cm, Kusthalle, Hamburgo


Caspar David Friedrich, Fim de tarde, 1827, Kunsthalle, Manheim


Caspar David Friedrich, Vista do Báltico, 1820-25, óleo sobre tela, Museum Kunst Palast, Düsseldorf.


Caspar David Friedrich, Árvore de corvos, c. 1822, óleo sobre tela, 59x73 cm, Museu do Louvre, Paris.


Caspar David Friedrich, Homem e mulher contemplando a lua, 1824, óleo sobre tela, 34x44 cm, Nationalgalerie, Berlim


Caspar David Friedrich, O peregrino sobre o mar de brumas, 1817-18, óleo sobre tela, 94,8x74,8 cm, Kunsthalle, Hamburgo

"A teoria do sublime do século XVIII se desenvolveu como parte do movimento tanto de autonomização das diversas artes, como também do sistema das artes (a Estética) com relação aos demais sistemas (político, religioso e moral). Esse conceito estabeleceu-se de modo paralelo a um conceito forte de imaginação. O indivíduo do romantismo do final do século XVIII e início do XIX estava plenamente familiarizado com a estética do sublime. Para se convencer desse fato, basta lembrarmos aqui as telas de um Kaspar David Friedrich que tematizam o incomensurável -- montanhas, planícies e o oceano."

SILVA, Márcio-Seligmann. "Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo" in: O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 39.

terça-feira, julho 24, 2007

Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido

SARAMAGO, José. Don Giovanni ou O dissoluto absolvido. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 127 p.

Por Aléxia Bretas

Ciente de uma tradição européia de quase quatro séculos de história, José Saramago resiste inicialmente diante do convite recebido para criar uma nova versão de Don Giovanni. Numa alusão ao título, mais tarde, escolhido para o texto teatral da peça musical Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, o escritor provoca: “Fica por decidir se o autor também virá a beneficiar-se de uma absolvição. Ele que se atreveu a criar o seu próprio Don Giovanni, depois de Tirso de Molina, Giliberto, Dorimon, Villiers, Molière, Rosimond, Zamora, Goldoni, Lorenzo da Ponte, Byron, Espronceda, Hoffmann, Zorilla, Pushkine, Dumas e Meérimée” (Saramago, 2005, p. 15).

Num primeiro momento, Saramago argumenta que tudo já teria sido dito sobre as aventuras de Don Giovanni (ou Don Juan), que não valia a pena repetir o que outros já tinham feito tão bem, que qualquer coisa que produzisse seria o mesmo que “chover no molhado” etc. Contudo, diante da reiterada insistência de Azio Corghi, o autor – que na época terminava seu Ensaio sobre a lucidez – promete, em desespero de causa, que se tivesse uma boa idéia, tentaria levar adiante o projeto. Dito e feito.

Em linhas gerais, pode-se dizer que Saramago, ao mesmo tempo, laiciza, humaniza e atualiza o mito de Don Juan – num certo sentido, como fizera em livros anteriores, como o Evangelho segundo Jesus Cristo, por exemplo. Seu ponto de partida é, sem dúvida, o dramma giocoso de Mozart e Da Ponte – Don Giovanni ou O dissoluto punido. Vale lembrar que a obra de Saramago tem início, praticamente, na cena em que ópera de Mozart termina – ou seja, quando a Estátua do Comendador vem levar o impenitente Don Juan para o inferno.


Charles Ricketts (1866-1931), A morte de Don Juan.

Aqui, a perspicácia do autor está em quebrar a gravidade da cena, com um episódio ridiculamente cômico: após o eloqüente pronunciamento do Comendador, acende-se uma modesta labareda no chão, vindo, imediatamente, a apagar-se, por três vezes consecutivas, e depois, definitivamente. “Acabou-se o gás” (Saramago, 2005, p. 36), ri-se o ateu. Num deliberado desacato à autoridade eclesiástica e seus protocolos, Saramago destaca a obsolescência da maldição como recurso catequético.

Além disso, ao deslocar o núcleo da intriga da verdade religiosa da Bíblia para a autoridade aritmética do catálogo onde Don Giovanni teria anotado o nome de todas as suas 2.065 conquistas, o escritor dá mais um importante passo na direção da completa secularização do drama. Nesta versão da história, tendo descoberto a existência do indiscreto registro, Elvira tenta convencer Leporello a arrancar a página com o seu nome. Diante da incisiva negação do criado, ela, então, traça sua implacável estratégia de ataque: destruir a “prova” de sua desonra, substituindo o livro por um outro idêntico, porém com as páginas em branco.

Para isso, ela vai até a casa de Don Giovanni, simula um mal-estar passageiro, e se aproveita da ausência do criado, para efetivar a troca dos documentos. Depois, a esposa traída convoca Dona Ana e Dom Otávio para a “hora da verdade”, onde o amante serial seria confrontado com os fatos alegados, e daí forçado a apresentar provas contra uma acusação contundente: a de ser impotente e, em conseqüência, jamais ter possuído uma única mulher, em toda a vida.

Conforme previsto, ao ter sua virilidade questionada por Dona Ana, Don Giovanni recorre à lista protocolar das milhares de mulheres seduzidas por ele. E qual não é o seu choque ao se dar conta de que o catálogo estava inteiramente vazio! Nesse instante, todo o seu mundo vem abaixo. E o lendário sedutor, enfim, conhece o inferno. Dona Elvira, Dona Ana, Dom Otávio e o Comendador riem-se, estentoreamente: “Sim, a maldição!” (Saramago, 2005, p. 76).

Mais uma vez, Saramago inverte as expectativas e, fugindo do déjà vu, retrata o renomado trapaceiro sendo, descaradamente, trapaceado. Aprendiz de feiticeiro, Don Juan não é mais o avatar do demônio barroco (como em Molina e Molière), nem a irresistível força da natureza romântica (como em Hoffmann), ou o arqui-poderoso Übermensch nietzschiano (como em Shaw), mas um homem de carne e osso – simplesmente, Giovanni.


Carlos Schwabe (1866-1926), Don Juan nos Infernos

Disso resulta uma importante mudança de perspectiva: “A minha idéia é que Don Giovanni, ao contrário do que sempre se diz, não é um sedutor, mas antes um permanente seduzido” (Saramago, 2005, p. 95), conta a autor. De implacável algoz dos corações femininos, o latin lover passa à vítima maior de suas artimanhas.

Neste sentido, é bastante significativo o encerramento do drama saramaguiano: procurado por Zerbina, o “dissoluto absolvido” se despe da reputação de grande conquistador e, conduzido pela camponesa, cede, enfim, ao convite implícito na frase: “É tempo que eu te conheça e me conheça a mim” (Saramago, 2005, p. 86). Sim, a história de Giovanni tem um final feliz. Reconciliando o céu e o inferno, são de Leporello as últimas palavras do drama: “Deus e o Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer” (Saramago, 2005, p. 90).

Tal máxima, contudo, está longe de desqualificar o heroísmo de seu protagonista. Muito pelo contrário. Numa correspondência a Corghi, Saramago destaca a enorme força ética de uma personagem incapaz de dizer “não”, mesmo quando sua própria vida encontra-se em risco. Ele observa: “Estamos perante um paradoxo: Don Giovanni, o sujeito imoral por excelência, é um homem fiel à sua própria responsabilidade ética” (Saramago, 2005, p. 96).

Enfim, somente à luz deste paradoxo, pode-se compreender inteiramente a sutileza do provérbio apresentado na epígrafe de sua não-pouco irônica releitura de Mozart: “Nem tudo é o que parece.”

Esta resenha é parte de um texto maior intitulado "Don Juan, herói da modernidade", ainda inédito.

segunda-feira, julho 16, 2007

L'amour

"O amor é a ocupação natural dos ociosos".
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 48.

quinta-feira, julho 12, 2007

Forma, Razão e Política


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quarta-feira, julho 04, 2007

Arte da Performance


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quarta-feira, junho 27, 2007

O Olho do Diabo


Don Juan e seu criado de volta do inferno. Cena do filme O olho do diabo, de Ingmar Bergman, 1960.

"A castidade de uma donzela é um terçol no olho do diabo"
Provérbio popular

segunda-feira, junho 25, 2007

As Flores do Mal



Edição brasileira: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.Tradução: Ivan Junqueira.

Donjuanismo, por Albert Camus

Não, Don Juan não morreu sob uma mão de pedra. Prefiro acreditar na bravata lendária, na risada insensata do homem sadio provocando um deus que não existe. Mas acredito, principalmente, que na noite em que Don Juan estava esperando na casa de Ana, o Comendador não apareceu e o ímpio deve ter sentido, depois da meia-noite, a terrível amargura daqueles que tiveram razão. Aceito ainda melhor o relato de sua vida que o mostra, ao final, encerrado num convento. Não é que se possa considerar verossímil o lado edificante da história. Que refúgio pedir a Deus? Mas isto representa antes a culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em ascese. É preciso entender que ambos podem ser as duas faces do mesmo desenlace. Que imagem mais assustadora desejar: a de um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como servivu a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem eloqüência e, como ele sabe, também sem profundidade.

Vejo Don Juan numa cela daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. Se ele olha para alguma coisa, não é para os fantasmas dos amores passados, mas, talvez por uma seteira ardente, para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se reconhece. Sim, é preciso fazer um alto diante desa imagem melancólica e radiante. O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível.

CAMUS, Albert. Donjuanismo. In: O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004. pp. 83-89.

quarta-feira, junho 20, 2007

Surrealité


Max Ernst, O encontro dos amigos, 1922.

Atrás, da esquerda para a direita: Philippe Soupault, Jean Arp, Max Morise, Rafaele Sanzio, Paul Eluard, Louis Aragon, André Breton, Giorgio di Chirico, Gala Eluard.

No primeiro plano: René Crevel, Max Ernst, Fedor Dostoïevski, Théodore Fraenkel, Jean Paulhan, Benjamin Péret, Baargeld, Robert Desnos

sexta-feira, junho 15, 2007

Narciso, por Caravaggio


Caravaggio, Narciso, c. 1597, Palazzo Barberini, Roma.

quarta-feira, junho 13, 2007

A História do Diabo I

Em A história do diabo, Vilém Flusser oscila entre o ensaio literário e o tratado filosófico, numa ficção existencial cientificamente informada.

Por Aléxia Bretas

E, no entanto, este livro provocativo – irredutivelmente absurdo – não é decerto nada disso.

Ou pelo menos, nada disso apenas.

Como o “mestre quase chinês” Walter Benjamin, Flusser pertence àquela categoria de autores inclassificáveis, segundo Habermas, destinados a produzirem resultados heterogêneos.

Tanto que apesar de ter vivido mais de trinta anos no Brasil, este admirador de Guimarães Rosa ainda é relativamente pouco lido por aqui – e menos ainda estudado.

Até por isso, vale conferir: FLUSSER, Vilém. A história do diabo. São Paulo: Annablume, 2005.

Imagem: Gustav Doré, Satã, em ilustração de Lost Paradise, de John Milton.

Homens Famosos I

VILÉM FLUSSER

Há pelos menos duas maneiras para se conseguir fama: ser glorioso e ser infame. (Isto é: havia tais maneiras antes da revolução dos meios de comunicação de massa. Atualmente há outras, mais eficientes). O importante é isto: tanto faz ser glorioso ou ser infame, já que glória e infâmia são reversíveis. A reversão, quando ocorre, é instrutiva. Permite julgar, não o homem famoso, mas o fenômeno da fama.

Há trinta anos a glória de Nero era esta: ter ele avançado, de um simples Lucius Domitius Nero, para Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus Imperator, ter aumentado o Império na Armênia e na Britânia, ter construído obras grandiosas e ter concedido à Grécia liberdade. A glória na sua infância era esta: ter matado sua mãe e vários outros parentes, ter perseguido os cristãos (leia-se judeus) e ter tocado lira enquanto Roma ardia. Atualmente a situação é outra. Aumentar impérios é infame, não glorioso. Construir obras grandiosas não é nem glorioso nem infame, é corriqueiro. Conceder liberdade é infame (já que a liberdade deve ser conquistada, não concedida, para ser liberdade). Matar sua mãe não é nem glorioso nem infame, mas é sintoma de psicopatologia. Perseguir judeus e cristãos é glorioso para uns, infame para outros. Mas tocar lira enquanto Roma arde, isto sim, é glorioso. Um happening de primeira categoria.

A glória independe dos fatos. Os fatos são estes: Roma pegou fogo por razões ignoradas em 64 d.C., e dois terços da cidade ficaram destruídos. Nero foi acusado injustamente de ter causado o fogo e desviou a acusação sobre os cristãos, já que estes contestavam o establishment. Os fatos não mencionam o violino, e o fogo nada tinha a ver com a morte de Nero (que morreu em 68). A glória se baseia, não em fatos, mas em lenda. Esta: enquanto Roma ardia, Nero tocava, e exclamando Qualis artifex pereo (Que grande artista morre comigo), morreu nas chamas. Esta a glória, e Tácito e Suetônio que se danem.

Esta a glória, porque modelo esplendoroso de arte pura, de arte efêmera, de arte conceitual, de antiarte, de improvisação, de living theater, de exposição autêntica, em suma: de superação da crise na qual se debatem as artes na atualidade. A pop-art, a arte fotográfica neo-realista, o movimento cinético e os acontecimentos experimentais em vão procuram aproximar-se da perfeição exemplificada por Nero. Imaginem a coisa transportada, mutadis mutandis, para o incêndio do edifício Andraus e terão idéia pálida das possibilidades inerentes em Nero. E depois julguem, não Nero, mas a atualidade.

Matéria publicada na Folha de S. Paulo, em 1972, e republicada no livro Ficções filosóficas, atualmente esgotado. Cf. FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998. pp. 153-4.

terça-feira, junho 12, 2007

Sonho


Henri Rousseau, Cigano adormecido, 1897.

Coruja de Minerva


Albrecht Dürer, Pequena coruja, 1508.

segunda-feira, junho 11, 2007

O Filósofo que Chora e o Filósofo que Ri


Donato Bramante, Heráclito e Demócrito, 1477, afresco transferido para tela, Pinacoteca de Brera, Milão.

quarta-feira, maio 30, 2007

O Estado da Arte sem Arte, em Lygia Clark


Lygia Clark, Cabeça coletiva, 1975.

A interface entre os planos estético, ético e político destaca o parentesco entre a experiência intelectual de Marcuse e a prática artística de Lygia Clark

por Aléxia Bretas

Contra a concepção marxista da arte como pura ideologia, Marcuse, em um de seus últimos ensaios, escreveria: "Toda a verdadeira obra de arte seria revolucionária, na medida em que subverta as formas dominantes da percepção e da compreensão, apresente uma acusação à realidade existente e deixe aparecer a imagem da libertação" (Marcuse, 2000, p. 13). Sem injustiça, de tal natureza é a prática artística de Lygia Clark. Intuitivamente solidária à premissa que admite o viés entre a arte e a política, seu trabalho investe no potencial emancipatório de uma dimensão estética transformada. Daí, já em 1968, ela afirmar: “Se eu fosse mais jovem, faria política” (Clark, 2006).

Clark – que teve uma iniciação relativamente tardia nas artes, aos 27 anos de idade – assina, com Ferreira Gullar e outros seis artistas, o Manifesto Neoconcreto, de 1959. Logo de saída, a expressão “neoconcreto” é apresentada como uma “tomada de posição” frente à arte “não-figurativa”, e particularmente à arte concreta, comprometida por uma “perigosa exacerbação racionalista” (Gullar in Clark, 2006). Dispostos a corrigirem os equívocos produzidos por uma noção mecanicista de construção, derivada de uma atitude cientificista, de extração gestáltica, os neoconcretos defendem o primado da obra sobre a teoria, reivindicando o privilégio da sensibilidade sobre a razão. E garantem: “Ou bem a profecia de uma total integração da arte na vida parece-nos possível (...), ou essa integração nos parece cada vez mais remota e a sua obra se nos mostra frustrada” (Gullar in Clark, 2006). Ao retomarem o projeto de dissolução da arte na vida propalado pelas primeiras vanguardas, figuras como Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis repõem o problema estético em nova chave, subvertendo as categorias de espaço, tempo, forma, estrutura e cor, em nome de uma experiência artística totalmente re-significada.



Lygia Clark, Superfície ondulada nº 5, 1955.


Que se recorde que de 1954 a 1956, Clark já havia realizado outras quatro exposições com o Grupo Frente – do qual faziam parte também Lygia Pape e Hélio Oiticica. Durante estes anos de pesquisa “geométrica” – em grande medida, inspirada em Mondrian –, os limites da representação pictórica são radicalmente esgarçados, pela tentativa, sempre renovada, de enfrentar a “crise do retângulo” com a superação da própria bidimensionalidade do quadro. No caso de Lygia Clark, as Superfícies Moduladas (1956-1958) correspondem à solução encontrada para o aparente esgotamento do plano e, vistas em retrospecto, representam seu primeiro passo para fora das fronteiras do objeto como tradicionalmente concebido.

Tanto que o estudo clarkiano da linha orgânica resulta na criação dos Casulos (1959) e, mais tarde, de suas célebres chapas de metal articuladas por dobradiças, a propósito, batizadas de Bichos (1960). A própria artista explica que tais “contra-relevos” ou “neo-objetos” são como um organismo vivo, “uma obra essencialmente ativa”. Ela continua: “Uma integração total, existencial, é estabelecida entre ele e nós. (...) Na realidade, trata-se de um diálogo em que o Bicho reagiu às estimulações do participante. [Portanto], esta relação entre obra e espectador – antigamente virtual – torna-se efetiva” (Clark, 2006). Ao colocar em xeque os protocolos da contemplação passiva, Lygia é pioneira em promover a participação do público como condição de possibilidade do próprio “acontecimento” artístico.



Lygia Clark, Bicho, 1960.


Em 1963, com a proposição Caminhando, a artista prossegue sua trajetória rumo à completa desmaterialização da obra de arte. Clark se justifica: “Se eu utilizo uma fita de Möebius para esta experiência, é porque ela contrasta com nossos hábitos espaciais: direita-esquerda; avesso-direito etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo” (Clark, 2006). Em seguida, ela reconhece seu empenho em “criar um espaço-tempo novo, concreto – não apenas para mim mas para os outros” (Clark, 2006), e escreve ao amigo Hélio: “Para mim, o objeto, desde o Caminhando, perdeu o seu significado, e se ainda o utilizo é para que ele seja o mediador para a participação” (Clark; Oiticica, 1998, p. 61).



Lygia Clark, Caminhando, 1963.


Em seu afã de habilitar uma modalidade efetivamente “intersubjetiva” de apresentação, a artista opera uma verdadeira “revolução copernicana” no âmbito da recepção estética, priorizando a participação do espectador – isto é, a realização do próprio ato – sobre a duração ou a objetividade da obra, no sentido tradicional do termo – vide experiências como as Máscaras sensoriais (1967), O eu e o tu (1967), A casa é o corpo (1968), Camisa de força (1969) e Arquiteturas biológicas (1969). Até por isso, Lygia se situa, como ela mesma diz, em algum lugar “entre o artista e o sistema”.

Fabbrini observa: “O que a artista buscava era a constituição de um estado estético (‘o estado da arte sem arte’) que só ocorreria com a recuperação do corpo sensório. Por isso os suportes físicos das proposições construtivas não são obras artísticas, mas instrumentos de sensibilização: são pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador” (Fabbrini, 1991, pp. 103-4). Avatar de uma prática eminentemente estética, Clark investe na experimentação de um constructo espácio-temporal alternativo como “propedêutica” para um outro tipo de vivência política. Tanto que em 1968, em Paris, ela própria decretaria: “Somos os propositores: enterramos a ‘obra de arte’ como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação” (Clark, 2006).



Lygia Clark, Arquiteturas biológicas, 1969.


Não é decerto gratuito que, numa correspondência de outubro do mesmo ano, enviada do Rio, Hélio Oiticica recomende a leitura de Eros e civilização à amiga: “você deve ler isso pois tem muito a ver com seu pensamento” (Clark; Oiticica, 1998, p. 44). Que se recorde que, nesta obra, Marcuse formaliza a crítica ao princípio de realidade constituído – ou seja, ao princípio de desempenho –, defendendo, contra Freud, a possibilidade de uma civilização não-repressiva, mediada pela dimensão estética.

Este texto é parte integrante do trabalho "Sobre a proposta de um ethos estético não-repressivo: ressonâncias marcusianas em Lygia Clark e Hélio Oiticica", apresentado no Congresso Internacional Estéticas do Deslocamento, realizado de 15 a 18 de maio de 2007, em Belo Horizonte.