segunda-feira, abril 30, 2007

segunda-feira, abril 23, 2007

O Declínio de Zaratustra


Edvar Munch, Nietzsche, 1906.

342.

Incipit tragoedia [A tragédia começa] -- Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e foi para as montanhas. Lá ele desfrutou seu espírito e sua solidão e por dez anos não se cansou disso. Mas afinal seu coração mudou -- e uma manhã levantou-se ele com a aurora, voltou-se em direção ao Sol e falou-lhe assim: "Ó, astro-rei! Qual seria a tua felicidade, se não tivesses aqueles a quem iluminas? Durante dez anos subiste até a minha gruta: estarias farto de tua luz e desse caminho, se faltassem eu, minha águia e minha serpente; mas nós te esperamos a cada manhã, recebemos da tua abundância e te bendizemos por ela. Olha! Estou enfastiado de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; preciso de mãos que estendam, quero oferecê-la e reparti-la, até que os sábios entre os homens novamente se alegrem de sua tolice e os pobres de sua pobreza. Para isso tenho que descer à profundeza: como fazes tu à noite, quando segues por trás do mar e levas a luz também ao mundo de baixo, ó estrela pródiga! -- assim como tu, eu tenho que declinar, como dizem os homens até os quais quero descer. Então, abençoa o cálice que quer transbordar, para que dele flua a água dourada e carregue a toda parte o brilho do teu enlevo! Olha! Este cálice quer novamente ficar vazio, e Zaratustra quer novamente ser homem -- Assim começou o declínio de Zaratustra.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 231.

segunda-feira, abril 16, 2007

Estranha Arte das Superfícies


M.C. Escher, Fita de Moebius, 1963.

Num "clássico" onde revisita as aventuras de Alice, Deleuze desafia o que chama de tradição vertical da metafísica, a partir de uma fecunda descoberta dos estóicos: as superfícies. Ao provocar tanto a águia de Platão, quanto as sandálias de chumbo de Empédocles, o autor desbanca a pretensão dos filósofos de visarem, ora às alturas, ora às profundezas, tornando ilegítima a associação que normalmente é aceita entre o exercício intelectual e a gravidade de uma atitude que se pretende árdua e penosa por definição. Mas o mérito de uma reflexão estaria irrevogavelmente vinculado ao coeficiente de seriedade ou dificuldade necessário à sua efetivação? Ou seria de fato possível a emergência de um pensamento que fosse, como queria Nietzsche, produtivo e leve?

Para saber mais a respeito, cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.

sexta-feira, abril 13, 2007

O Método Desviante

Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de filosofia

JEANNE MARIE GAGNEBIN

(...) Quarta regra de método desviante (“Método é desvio”, dizia um velho mestre quase chinês, Walter Benjamin): não se levar tão a sério assim, só porque estudou latim e grego ou fez doutorado na Alemanha ou consegue entender Heidegger. Mais radicalmente: não levar demais a sério as “opiniões” pessoais, em particular as suas. São, no melhor dos casos, somente a ocasião de ir além delas, do reino dito encantado das “idéias” e “crenças” subjetivas. Não cair na ilusão liberal de que a liberdade se esconde nas escolhas individuais, arbitrárias e/ou manipuladas. Se há algo que a reflexão filosófica pode realmente ajudar a pensar é a necessidade de ultrapassar, de ir além -isto é de “transcender”- os pequenos narcisismos individuais para vislumbrar “o vasto oceano da Beleza” (dizia o velho Platão), o Reino do Espírito, dizia outro velho senhor idealista, hoje talvez digamos o “enigma do Real” ou, então, as linhas de fuga e os acontecimentos.



Walter Benjamin (1892-1940).


Essa dimensão “objetiva” (não em oposição ao “sujeito”, mas levando em questão a materialidade e a historicidade das “coisas” que nos resistem e nos atraem) do pensamento justifica a exigência, imprescindível, da diferenciação conceitual, isto é, do esforço e da ascese (askesis, ou exercício, em grego) conceituais: não se trata de malabarismos intelectuais complicados, mas de tentativas sempre reiteradas de compreender o “real” sem violentá-lo. Esse esforço, essa “paciência do conceito”, vai, de novo, contra a pressa reinante, e também contra os “achismos” tão prezados na imprensa e na televisão, nos meios ditos de “comunicação”. Também resiste à ilusão de que o debate de idéias, como se diz, seja um enfrentamento de dois ou mais oradores brilhantes (ou não) que tentam, cada um, fazer prevalecer sua opinião sobre a opinião do outro.

A ascese conceitual também implica o aprendizado de um certo despojamento da vontade individual e concorrencial de auto-produção perpétua em detrimento dos outros. Não se trata de ser melhor que os outros, mas de estar atento às possibilidades de transformação da realidade, portanto, de não passsar ao lado dela, de compreendê-la melhor, na sua possível mutabilidade. Isso implica, aliás, que, muitas vezes, não sei, não posso dizer nada que ajude, portanto também ouso calar-me, não cedo à tentação de falar sobre tudo e qualquer coisa.

Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.

Matéria originalmente publicada em Trópico, em 3/12/2006. Para ler o texto na íntegra, clique no título deste post.

quarta-feira, abril 11, 2007

Correction Devices: Lego Concentration Camp

Zbigniew Libera conversa com Priotr Rypson


Zbigniew Libera, Correction Devices: Lego Concentration Camp, 1996. 7 Box Lego Set, Edition of 3, Galleri Wang, Oslo, and Paulina Kolczynska Fine Arts, New York.

Priotr Rypson: Sua mais recente exposição [em 1996] no Centro de Arte Contemporânea de Varsóvia chama-se Correction Devices.
Zbigniew Libera: O título tem duplo sentido. Por um lado pode significar trabalho em/com dispositivos corretivos ou mecanismos já existentes; por outro, pode ser uma sugestâo para corrigir dispositivos já existentes. Refiro-me a mecanismos que utilizamos em nossa cultura para treinar padrões de comportamento necessários para que as pessoas ajam como cidadãos de uma sociedade contemporânea. A questão essencial nesse trabalho é que ele se realiza em objetos reais, que realmente existem. Compartilho o pensamento de Michel Foucault a respeito da sociedade e da cultura; o que sou, meu ego, é produto de determinado sistema e pode se expressar por meio dos dispositivos corretivos, mecanismos utilizados para treinar o ego (...)







P. Seriam, então, instrumentos de crítica?
Z. Não creio. Não considero meu trabalho com esses dispositivos uma crítica à sociedade ou ao sistema social. Acho que sâo meios para conseguir obter controle sobre aquilo que tem formado meu ego. A crítica também é um elemento desse sistema, desse método.

P. O senhor incluiu neste trabalho elementos ligados a modelos educacionais, ao problema de importar tecnologia ocidental, know-how, padrões de pensamento ocidentais?
Z. É claro, por isso usei o Lego. Quase tudo está presente nesse sistema. E na Polônia, um dos países que não colonizaram, mas que foi submetido a pressões colonizadoras, a racionalidade está associada à influência ocidental, à ordem teutônica, à força, à colonizaçâo alemã... colonizando extremos remotos da Europa. Mas quero colocar a questão - não pretendo controlar todos os pontos de vista do público. Há toda uma categoria de objetos surrealistas e é importante que eles levantem a maior controvérsia moral possível. Isso pode ser provocante do ponto de vista moral (...)






P. Muitos dos trabalhos nesta exposição dizem respeito a vários valores; por outro lado, também se referem a design. Eles me fazem lembrar da estratégia de trabalho usada por Toscani para a Benetton, que localiza os tabus culturais e projeta por meio deles determinados padrões e temas. Será que um supermercado seria um local mais apropriado do que uma galeria para exibir seus trabalhos?
Z. Esses trabalhos abordam em parte as coisas que conhecemos de um ponto de vista da vida "normal". Gostaria de poder dizer que essa realidade é o que pode ser comprado em uma loja. E isso é mais real do que a natureza. Sou a favor do uso de uma linguagem que seja dolorosamente comunicativa. Precisamos começar a pensar como produtores dessas mercadorias e isso é o que pretendo simular no nível estético. Portanto, preciso pensar como um designer e não como artista. Hoje o design cria estéticas muito mais fortes do que a arte. Várias funções sociais anteriormente desempenhadas pela arte hoje foram substituídas pelo design. O pacote torna-se o produto, as necessidades estéticas e o gosto são criados pelos designers.

P. Como diretor de arte de sua "própria empresa", o senhor empacota idéias?
Z. O que é relevante é o absurdo. Às vezes um absurdo doloroso. Ajo como se fosse um alto assalariado de uma empresa, onde sou um dos elementos de uma grande máquina, onde sou o condutor de tudo, reproduzindo a maneira como uma grande equipe atua. Se posso usar as peças do Lego para construir um campo de concentração, demonstro dessa maneira o absurdo de outros conjuntos - tão absurdos quanto o meu.





O trabalho do artista polonês Zbigniew Libera, Correction Devices: Lego Concentration Camp (1996), foi apresentado na XXIII Bienal de São Paulo.

Arte, Educação e Cultura Visual

quarta-feira, abril 04, 2007

Centro de Arte Contemporânea Inhotim

Em Brumadinho, a 60 km de Belo Horizonte, fica o Centro de Arte Contemporânea Inhotim.




Inaugurado recentemente, o CACI ocupa uma área de 350 mil m² de jardins paisagísticos, parte deles projetado por Burle Marx. Abriga uma enorme coleção botânica de árvores e plantas tropicais, como palmeiras imperiais, tamareiras e as antigas patas-de-elefante, além de um acervo artístico com mais de 400 obras produzidas desde a década de 1960 até os dias atuais.











São pinturas, grandes esculturas, desenhos, fotografias, vídeos e instalações de renomados artistas brasileiros e internacionais exibidos nos jardins e em uma série de galerias. Pavilhões abrigam instalações permanentes de artistas como Tunga, com a obra "True Rouge" e Cildo Meireles, com "Através" e as fotografias de Miguel Rio Branco.



Painel Galeria da Praça (detalhe), CACI, Brumadinho, Brasil.



Paul Maccarthy, Boxhead, 1999-2000, CACI, Brumadinho, Brasil.



Saint Clair Cemin, Chimera Cogitans, 1998, Mármore, CACI, Brumadinho, Brasil.



Zhang Huan, CACI, Brumadinho, Brasil.



Jarbas Lopes, CACI, Brumadinho, Brasil.

Enfim, a coleção é impressionante. O lugar é belíssimo. Vale conferir.

Fotos: Aléxia Bretas, 2007.

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quarta-feira, março 28, 2007

Benetton: Estetização da Política?


United Colors of Benetton, Food for Peace, Fevereiro 2003.



United Colors of Benetton, Food for Education I, Fevereiro 2003.



United Colors of Benetton, Food for Work I, Fevereiro 2003.



United Colors of Benetton, Food for Life, Fevereiro 2003.



United Colors of Benetton, Direitos Humanos -- Homens, Março 1998.



United Colors of Benetton, Direitos Humanos -- Mulheres, Março 1998.



United Colors of Benetton, Corações, Março 1996.



United Colors of Benetton, Cavalos, Março 1996.



United Colors of Benetton, Soldado Bósnio, Fevereiro 1994.



United Colors of Benetton, Aids -- David Kirkby, Fevereiro 1992.



United Colors of Benetton, Pássaro, Setembro 1992.



United Colors of Benetton, Amamentando, Setembro 1989.



United Colors of Benetton, Algemas, Setembro 1989.

Estas e muitas outras imagens estão disponíveis para download em alta resolução (300 dpi) no site do Benetton Media Center. Para ter acesso aos arquivos, clique no título deste post.

Arte e Dor

Evidentemente se quiséssemos discutir todos os aspectos da questão arte e dor/violência deveríamos analisar ainda a função dessa arte em um registro que não o do âmbito muito restrito das Bienais e exposições de arte.


Peter Witkin, Woman once a bird, Los Angeles, 1990.

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA

A arte contemporânea, apesar de ter conquistado uma esfera da liberdade estética oposta ao programa da educação estética da humanidade de um Schiller, representa uma esfera onde os principais problemas da contemporaneidade estão sendo refletidos e retrabalhados de um modo ao mesmo tempo vertiginoso e criativo.

Se para Schelling o artista era o mediador do Universal, hoje em dia tendemos a ver na sua arte a manifestação de um 'real' que assombra a nossa sociedade super-tecnológica. Essa arte decerto não pretende dar 'respostas' aos nossos atuais dilemas.

Mas cabe a nós dialogar com a 'arte da dor' que pode nos mostrar não apenas como pensar as fraturas das nossas identidades, mas também pode justamente nos ensinar a não esperar respostas completas e prontas para os desafios impostos pelo convívio em uma sociedade agredida pelas violências tecnológica, urbana e social, acuada pela questão da diferença e pelas duas vertentes mais irracionais da 'solução' dessa questão: a da globalização, que nega as diferenças e a do fundamentalismo, que reafirma a velha ontologia racista.

O campo do estético não pode mais ser pensado como independente do ético.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 56.

segunda-feira, março 26, 2007

O Performer Essencial

Para o ator de ficção seus instrumentos básicos serão o texto, o contexto da peça, época em que acontece, relações entre os personagens. Para o performer essencial, seu instrumento é o espaço e como ele se desloca ali.



DENISE STOKLOS

No teatro essencial não há personagens. Há "persona", há "in-corporamento" das opções do próprio performer, à vista do público, na atualidade de sua performance.

[Por isso] (...) o performer essencial será sempre político. Não importa a ele nada que na finalidade não signifique possibilidade de convite a questionamento, reflexão, ação e transformação.

Tudo que ele traga à cena será para a elaboração de uma opção. Ele será indignado, pois todos os temas escolhidos lhe sugerem algo imperfeito. Algo que lhe requisita participação. E no palco ele está para apresentar sua questão de ordem.

Denise Stoklos, O performer essencial, 2001.
Para ter acesso ao site da autora, clique no título deste post.

quinta-feira, março 22, 2007

A Sociedade como Obra de Arte

Superação histórica da arte significa, como possibilidade de hoje, a fusão da produção material e intelectual, a compenetração recíproca do trabalho socialmente necessário e do trabalho criativo, da utilidade e da beleza, do valor de uso e do valor. Uma tal unidade não é possível como embelezamento organizado do feio, como invólucro decorativo do brutal, mas apenas como a forma de vida universal que homens livres podem se dar numa sociedade livre.

Herbert Marcuse, A sociedade como obra de arte, 1967.


Marcuse e o Movimento dos Estudantes, Berlim, 1968.

terça-feira, março 20, 2007

O Mito de Sísifo

ALBERT CAMUS

Sísifo é o herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo o ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta Terra. Nada nos dizem sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. No caso deste, só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta à planície.

É durante esse regresso, essa pausa que Sísifo me interessa. Um rosto que padece tão perto das pedras já é pedra ele próprio! Vejo esse homem descendo com passos pesados e regulares de volta para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora, que é como uma respiração e que se repete com tanta certeza quanto sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes, quando ele abandona os cumes e mergulha pouco a pouco nas guaridas dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que sua rocha.

Esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2004, pp. 138-9.

Imagem: Tiziano, Sísifo, 1548/9. Óleo sobre tela, 2,37x2,16m, Museu do Prado, Madri.

quarta-feira, março 07, 2007

Um Outro Esclarecimento é Possível?

Contadas seis décadas desde a publicação do livro mais negro da Escola de Frankfurt (a Dialética do Esclarecimento, 1947), fenômenos como o desenvolvimento das redes, a emergência do software livre, a atuação da mídia independente e, sobretudo, o movimento pela Cultura Livre poderiam ser tomados, no limite, como contra-agentes da indústria cultural -- e, portanto, como avatares de uma outra Aufklärung?

terça-feira, março 06, 2007

Quando os museus viram mercadoria

Em busca de novas fontes de dinheiro e prestígio, grandes museus do mundo partem para o aluguel de acervos, relações submissas com o mecenato, atração obsessiva de público. Que isso significa para a preservação das obras e das próprias idéias de arte e cultura?

Philippe Pataud Célérier



Nos novos conceitos de marketing cultural urbano, o museu torna-se o timão de projetos urbanísticos para atrair turistas e exposições. Ninguém ignora que “o consumo dos turistas dirige-se para onde há grandes iniciativas culturais” [6]. Cerca de 800 milhões de pessoas se dirigiram de um país a outro em 2005 [7]. Cada território quer seu próprio museu, cada museu seu anexo: de Atlanta a Cingapura; dos países do Golfo a Hong Kong; amanhã, a China. A fundação privada Guggenheim é a mais agressiva. Sua rede estende-se de Veneza a Berlim, de Bilbao a um hotel-cassino em Las Vegas, ao qual o Museu Hermitage de São Petersburgo aluga suas coleções para compensar o parco incentivo do Estado russo. Na França, os grandes museus se internacionalizam. “Não tenhamos medo das palavras. Eles comercializam seu patrimônio para ampliar as fontes de renda”, especifica Françoise Cachin, ex-diretora do Musées de France, comentando a parceria com Atlanta.

Descaso do Estado? “É um fantasma”, antecipa o ministro da Cultura em sua apresentação do orçamento para 2007. Mas ninguém foi preterido. Se os museus se multiplicam, os recursos públicos se diluem. Cada um deve aumentar seus próprios recursos. Os fundos para o Louvre passaram de 39,4 milhões de euros para 69,4 milhões de euros, entre 2000 e 2005. No Pompidou, as receitas da bilheteria aumentaram 41%, enquanto o lucro comercial aumentou mais de 64,4% (concessões, locação de espaços, trocas e permutas) [8]. Essa busca por autofinanciamento pode perturbar a missão primária dos museus – a pesquisa, a preservação e a comunicação entre suas coleções para “fins de estudo, educação e fruição” como lembra o Conselho Internacional de Museus da Unesco.

“Hoje o complexo de Versalhes é visto como um bem de consumo do qual é preciso extrair o máximo de dinheiro, sem considerar que se trata de um recurso não renovável e que, ao acolher cada vez mais visitantes em lugares não concebidos para tal fim, condenamos o patrimônio a uma degradação irreversível”, observa Claude Rozier [9], sócio da Associação dos Amigos de Versalhes. Desde julho de 2006, o acesso à Capela do Palácio e à Ópera foi liberado. Estudam agora deixar nas mesmas condições os apartamentos privados de Luís 14.

É o conceito do “ingresso-passaporte com visita guiada em áudio”, que dá acesso ao conjunto dos circuitos abertos à visitação pública (25 euros por pessoa durante o verão, fins de semana e feriados). É um sucesso, segundo o relatório público de Versalhes – 402.290 passaportes foram vendidos em 2005 em comparação às 37.969 vendas em 2000 –, o que “deve levar Versalhes a generalizar os ingressos para toda a estação, simplificando a gestão e facilitando a geração de recursos”. “Pretende-se abrir o maior número de salas", dizem os críticos: "Mas a Opéra Royal não é a casa do Mickey e o mármore de três séculos da Capela não resistirá por muito tempo sob os sapatos dos visitantes!”

Trecho do artigo publicado pelo Le Monde Diplomatique na edição brasileira de fevereiro de 2007. Para ler a matéria na íntegra, clique no título deste post.

quinta-feira, março 01, 2007

Passagens, de Walter Benjamin

Walter Benjamin. Passagens. Edição alemã: Rolf Tiedemann. Organização da edição brasileira: Willi Bolle. Colaboração na organização da edição brasileira: Olgária Chain Féres Matos. Tradução do alemão: Irene Aron. Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão técnica: Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 1167 p.

Por Aléxia Bretas

Lançada em setembro último no Brasil, Passagens é a grande obra-prima póstuma do filósofo, crítico e ensaísta alemão Walter Benjamin. A expectativa, portanto, não é gratuita. Escrito entre 1927 e 1940, mas publicado somente em 1982 na Alemanha, seu projeto inacabado é composto por uma pletórica coletânea de esboços, notas e materiais agrupados por módulos temáticos e organizados em ordem alfabética, cujo propósito maior é apresentar a Paris do século XIX – “cidade de sonho” – como a capital do Capital.

Fruto da parceria da Editora UFMG com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, esta bem-cuidada edição brasileira traz posfácios de Willi Bolle e Olgária Matos, além de um “Glossário” com os principais termos utilizados por Benjamin (em alemão e português), e um “Léxico” de nomes, conceitos e instituições preparado com base na versão norte-americana. Ainda como inovação em relação ao original, este extenso volume de 1.167 páginas conta com um aparato de “Notas introdutórias” referente a cada um de seus textos principais: os “Exposés”, o conjunto de “Notas e materiais”, o arquivo “J – Baudelaire” e o “Primeiro esboço”. Para aqueles ainda não totalmente familiarizados com a arquitetura labiríntica e constitutivamente multiestratificada do trabalho, tais comentários contribuem bastante para a inteligilidade geral de seu conteúdo, expresso quase sempre de forma provisória e descontínua.

Até por isso, as Passagens podem ser lidas como uma espécie de work in progress a ser continuado ou “potenciado” por seus intérpretes. Rouanet, por exemplo, opta por realizar a montagem das “Notas e materiais” com base na planta do “Exposé” de “Paris, a capital do século XIX” (cf. Rouanet, 2000). Buck-Morss recorre à concepção benjaminiana de uma historiografia imagética, e desloca o estudo de uma filosofia material da modernidade do século XIX para o século XX (cf. Buck-Morss, 2002). Willi Bolle, por seu turno, reconstitui o projeto do autor a partir da apresentação da metrópole moderna como palco da história (cf. Bolle, 2000), e defende: “Apesar da importância de se conhecer o processo real de construção, não se pode excluir como menos valiosas as leituras do ângulo da ‘obra possível’” (Bolle, 2000, p. 60).

Não é à toa que as controvérsias em torno de uma das maiores polêmicas literárias do século XX mantém-se vivas até hoje. A começar pelo título escolhido para a obra inicialmente concebida como uma “feeria dialética”. Refletindo o caráter essencialmente polifônico de sua recepção, Das Passagen-Werk (1982); Parigi, Capitale del XIX Secolo (1986); Le Livre des Passages (1989) e The Arcades Project (1999) são algumas entre as principais traduções recebidas pela pesquisa que o próprio Benjamin, na maioria das vezes, se reporta como "Passagenarbeit" – portanto, “Trabalho das passagens”.

Apesar das declaradas intenções do autor em escrever, ainda em 1927, um artigo denominado “Passagens parisienses”, o organizador desta edição propõe uma outra solução para o título da obra em português. Ao optar pela supressão do adjetivo “parisienses”, ele argumenta que o termo “passagens” teria o mérito de tornar possível a remissão a um rico plexo semântico, válido em, pelo menos, três dimensões justapostas: a arquitetônica, como construções urbanas típicas da Paris do Segundo Império; a epocal, como a transição da Era das Revoluções (1789-1848) para a Era do Capital (1848-1914); e a metodológica, como forma de exposição de uma outra proposta historiográfica composta a partir de um móbile de fragmentos, imagens e citações.

Este texto corresponde à parte da resenha publicada pelo nono volume dos Cadernos de Filosofia Alemã do Departamento de Filosofia da USP.

Provocação...


Leonardo da Vinci, Monalisa (La Gioconda), 1503-05.
Óleo sobre madeira, 69 x 57 cm, Museu do Louvre, Paris.

"A Europa é uma burrice aparelhada de museus".
Nelson Rodrigues, Flor de Obsessão.

As linguagens do Futurismo


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terça-feira, fevereiro 27, 2007

Do Sublime ao Abjeto


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domingo, fevereiro 25, 2007

A Fórmula do Desvio

JACQUES RANCIÈRE

Um porco cor-de-rosa deitado, feito de silicone, metal e fibra de vidro, levanta suavemente orelhas, patas e rabo ao comando de um aparelho elétrico.


Paul McCarthy, Mechanical Pig, 2005, silicone, platinum/fiberglass, metal, electrical components, 101.6 x 147.3 x157.5 cm.

Um pouco mais adiante, outros porcos, estes de latão, copulam alegremente com piratas, à sombra de coqueiros metálicos, que enfeitam uma ilha de latão pousada num mar de resina. Ao redor, na galeria, vêem-se barcos de madeira ou bustos de piratas em materiais diversos. As paredes da sala estão cobertas de grandes desenhos, feitos a guache, representando outros piratas de histórias em quadrinhos envolvidos em diversas atividades burlescas ou pornográficas.



Paul McCarthy, Pirate Party Photo, 2005, Video Still

No andar superior, acumulam-se bustos, máscaras ou corpos desmembrados em gesso; montagens fotográficas nas paredes nos mostram corpos misturados e pintados de vermelho berrante, que parodiam as cerimônias sangrentas do acionismo vienense dos anos 60, enquanto o manequim de cera do artista adormecido exibe seu sexo descoberto ao olhar divertido dos adolescentes de passagem.
A exposição, apresentada pela White Chapel Art Gallery, chama-se "Lala-Land Parody Paradise" [Paraíso da Paródia Lala-Land] e confirma o gosto de seu autor, Paul McCarthy, pelas grandes encenações que misturam a iconografia popular dos filmes de animação, dos quadrinhos ou dos parques de diversão e a dos filmes pornográficos, com a intenção sempre declarada de nos revelar o "lado sombrio" das mitologias consumistas, ao mesmo tempo em que dá livre curso à alegre energia popular captada pelos ícones do comércio e do poder.



Jake and Dinos Champman, Disasters of War, 1993. Mixed media
displayed: 1300 x 2000 x 2000 mm, sculpture, Tate Gallery, London


Um pouco mais ao norte, numa outra galeria do East End londrino, os irmãos Jake e Dinos Chapman propõem, em torno dos "Caprichos" de Goya, por eles reproduzidos, modificados e sarapintados, uma proliferação de desenhos e gravuras nos quais se agita todo um povo de ícones infantis -Chapeuzinho Vermelho, os três porquinhos, Bambi e uma infinidade de coelhos, ursos, feiticeiros, duendes e dragões os mais variados, todos entregues a atividades perversas.
Do outro lado do Tâmisa, a exposição "Universal Experience" dedica-se às produções artísticas suscitadas pelo fenômeno do turismo de massa. Nela se destaca, entre um vídeo sobre turistas americanos que imitam canibais e fotografias de diversos lugares célebres reproduzidos num parque de diversões de Las Vegas, uma grande instalação de Thomas Hirschorn, em forma de pirâmide de papelão, na qual se misturam, sobre obeliscos e sarcófagos igualmente de papelão, imagens de imprensa da Guerra do Iraque, cópias de estatuetas egípcias e imagens pornográficas.




Prosseguindo em direção ao oeste, pode-se visitar a terceira edição da Frieze Art Fair e ali constatar que o "retorno da pintura", muito proclamado nos últimos tempos pelos galeristas, obedece basicamente à mesma estética. Quer utilizem técnicas neo-expressionistas, pós-pop ou neo-hiper-realistas, os pintores recorrem em massa ou à iconografia popular e publicitária americana ou à dos heróis do trabalho soviética e chinesa, quando não às estampas infantis ou aos cromos religiosos de antigamente.
Não se sabe muito bem, no limite, se essa pintura "neo-pós" imita a iconografia popular e publicitária kitsch, se imita a pintura que imitava ontem essa iconografia ou se imita simplesmente a prática antiquada da pintura, transformada ela própria num elemento da cultura kitsch.

Estereótipos da percepção

É o problema colocado por essas estratégias artísticas que reproduzem ou transformam a iconografia dominante. Elas se afirmam, às vezes, como um simples jogo. Mas, com mais freqüência, insistem em reafirmar uma vocação de crítica política e social. Elas pretendem reelabor todos esses ícones da infância, da mercadoria, do comércio e da publicidade para nos fazer perceber os estereótipos que governam nossa percepção.
Um termo, sempre em voga, resume tal pretensão: desvio. Ao darem uma forma plástica monumental às imagens planas das telas midiáticas e dos cartazes publicitários, ao acentuarem a vulgaridade das imagens reinantes, ao transformarem seu erotismo discreto em pornografia berrante, os artistas parodistas estariam levando adiante a tradição crítica do desvio tal como era entendido nos anos 60 e 70.



Guy Debord, Contre le cinema, DVD, 2005.

O grande teórico da "sociedade do espetáculo", Guy Debord [1931-94], já não havia proposto, com essa finalidade, este conceito: voltar contra o inimigo suas próprias imagens? Há alguns anos, em Paris, o centro Pompidou apresentava uma grande exposição intitulada "Para Além do Espetáculo": filmes publicitários, personagens de mangás, sons de discoteca, balões, carrosséis e brinquedos reciclados associavam-se a um caubói lúbrico de Paul McCarthy e a uma estátua neoclássica de Jeff Koons por ele mesmo como ídolo pop, para significar a derrisão das distrações e das imagens kitsch da cultura de massa.
O problema é que esse tipo de desvio já foi muito praticado, e a iconografia dominante o anula de antemão, ao produzir sua própria derrisão e sua própria paródia.
Mas também não é certo que a referência ao situacionismo e ao pensamento contestatário de Maio de 68 seja muito fiel ao estilo desse pensamento. O novo entusiasmo pelo situacionismo oferece os meios de verificá-lo: Guy Debord entendia por espetáculo algo mais que a cultura midiática de massa e, por desvio, não apenas a repetição em traços exagerados dos ícone mercantis. Seus filmes, durante muito tempo subtraídos ao público por sua vontade mesma, estão reaparecendo, aliás, em salas de cinema e sendo editados em DVD.
E quem vê "A Sociedade do Espetáculo" [1973] ou "In Girum Imus Nocte et Consumimur Igni" [1978] pode constatar que o espetáculo, para o teórico do situacionismo, era bem mais que a cultura midiática. Era o mundo da vida separado dos indivíduos, apropriado pelas forças do capitalismo ocidental e da burocracia soviética.
Assim, ele não buscava, nesses filmes, enfatizar a proliferação das mercadorias e de seus ícones.
Suas imagens noturnas dos "halles" de Paris nada têm a ver com o amontoado de mercadorias que, em muitas instalações contemporâneas, supostamente critica o reinado do consumo. Elas evocavam nostalgicamente a velha Paris misteriosa dos passeios surrealistas, que ia ser destruída pelas grandes operações imobiliárias dos anos 70.
E as imagens que ele voltava contra o inimigo não eram as das publicidades estupidificantes. Eram histórias de amor, ação e heroísmo contadas pelos westerns de John Ford, Raoul Walsh e Nicholas Ray.
Não era por derrisão antiianque que ele nos mostrava Erroll Flynn partindo ao ataque contra as tropas sulistas ou os índios, mas para reivindicar sua bravura no ataque contra o inimigo capitalista e burocrático. E o tom aristocrático e o estilo elegante de seus comentários estavam muito longe do humor carnavalesco dos artistas de hoje. A oposição global declarada contra a dominação mercantil dispensava o trabalho de copiar-lhe as insígnias.
Certamente havia em Guy Debord uma pose aristocrática muito particular. Mas, se ele pôde se tornar um ícone do "pensamento de 68" é porque a forma de contestação da cultura dominante praticada naqueles anos estava muito distante da que reivindicam, em nome do desvio, os artistas de hoje.



Philippe Garrel, Amantes Constantes, 2005

Uma outra ocasião de verificar isso é fornecida pelo filme de Philippe Garrel, "Les Amants Réguliers" [Os Amantes Constantes], recentemente premiado no Festival de Veneza. Não que se trate de um filme militante que lembraria as verdadeiras palavras de ordem do combate parisiense de 68. Ao contrário, a distância está no núcleo do filme: distância entre os grupos jovens dos atores de hoje e os grupos jovens dos anos 60, cuja sensibilidade e as maneiras de ser tentam recuperar; mas distância também daqueles próprios grupos em relação ao que lhes acontecia e ao que procuravam fazer advir na sua tentativa de "mudar a vida": confusão da noite das barricadas, dividida entre o amor a reinventar e a fidelidade à subversão artística, desejos de fuga e seduções da droga.
Os personagens do filme atravessam essas experiências, nas quais se resume facilmente a história de uma geração, como que na ponta dos pés, como que assustados com o ruído que fizeram por um momento na cena do mundo. O que o filme de Garrel nos restitui de forma perturbadora é a fragilidade, a timidez que estiveram no centro do sonho de transformação daqueles anos. É essa espécie de pudor meditativo no confronto que é tachado, retrospectivamente, de ingenuidade.
Mas talvez haja uma lei mais geral: os grupos nunca estão realmente prontos para os grandes confrontos nos quais se arriscam. Comparada à falta de habilidade dos jovens heróis de Garrel, a animação berrante dos campeões do desvio de hoje se parece mais com a patifaria que acompanha os consentimentos à ordem existente.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Paulo Neves.

Matéria publicada pela Folha de S. Paulo na edição de domingo, 04/12/2005. As imagens foram acrescentadas a posteriori pela autora deste blog.