O convite de Walter Benjamin à educação
Com uma produção heterogênea e, muitas vezes, fragmentária, Walter Benjamin é um pensador instigante, cujas contribuições para a educação são indissociáveis do restante de sua obra
Aléxia Cruz Bretas
Vale lembrar que a biografia deste autor alemão encantado por Paris é indelevelmente marcada pelas contingências históricas que atravessam toda a primeira metade do século XX, refletindo-se não apenas no teor fortemente político de ensaios como “Teorias do fascismo alemão” (1930) e “Experiência e pobreza” (1933), mas também no caráter provisório e descontínuo de trabalhos controvertidos como as Passagens (1927-1940).
Seja como for, o legado de Walter Benjamin para a educação pode ser auferido no volume com a compilação de suas Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, mas, absolutamente, não se restringe a ele. Na medida em que boa parte de seus escritos questionam – direta ou indiretamente – as convenções predominantes entre as grandes corporações de ensino, é preciso que se atente para as perspectivas abertas por uma ainda embrionária teoria da aprendizagem, cuja base se assenta sobre uma tríplice crítica: 1) crítica ao declínio dos modos tradicionais de experiência, discurso e narração; 2) crítica à excessiva compartimentalização e instrumentalização das disciplinas ditas especializadas; 3) crítica à pretensa neutralidade do processo de aquisição, tratamento e transmissão do conhecimento.
A partir destas considerações preliminares, chega-se não exatamente a um programa ou pauta de ensino, mas a um projeto in progress, a ser potenciado por educadores, professores e intérpretes – talvez, por isso, seja mais adequado referir-se a uma tarefa ou a um convite, e não propriamente a uma herança ou legado.
A questão do método
“Método é caminho indireto, é desvio.” Com esta sentença, tão paradoxal quanto provocadora, Walter Benjamin justifica o caráter labiríntico de seu polêmico livro do Barroco, resumindo a metodologia anticartesiana que o acompanhará dos primeiros aos últimos textos. A despeito da sumária rejeição pelo conservador meio acadêmico alemão dos anos 20, seu trabalho de juventude contém algumas das proposições mais fundamentais para a compreensão de seu modo bastante peculiar de – nas palavras de Adorno – filosofar mesmo contra a própria filosofia.
Isso quer dizer que, a fim de encontrar formas alternativas para representar o que, muitas vezes, escapa às categorias e procedimentos autorizados pela ciência, Benjamin se vale de recursos “limítrofes” como a técnica da montagem, a metáfora ou a alegoria. Donde resulta um pensamento essencialmente plástico, não-linear, composto de pequenos fragmentos significativos agrupados segundo uma lógica imprevista – como os mosaicos góticos ou as colagens dadaístas.
“As ideias se relacionam com as coisas, assim como as constelações com as estrelas.” Com esta sugestiva analogia, Benjamin pretende levar adiante sua iniciativa de resgatar os fenômenos, eventos ou casos particulares, que por suas características excepcionais, não são englobados pela dinâmica universalizante dos conceitos, permanecendo, pois, à margem do conhecimento dito “oficial.” Aqui, o exemplo utilizado pelo autor é o do drama barroco alemão – na época, não levado a sério pelos estudiosos, pelo fato de não se enquadrar dentro do que Aristóteles, um dia, definira através de seu canônico conceito de tragédia.
Da narrativa à informação
Ainda com relação ao livro do Barroco, Benjamin ressalta a necessidade de encontrar uma forma de apresentação que esteja à altura dos impactantes acontecimentos históricos. Na verdade, a motivação de revelar o lado oculto das coisas à luz de sua irredutível temporalidade é um dos traços mais expressivos da experiência intelectual do autor de ensaios inevitavelmente marcados pelo trauma da guerra – como, por exemplo, “O narrador” (1936).
Chamando atenção para um fato que até hoje repercute diretamente sobre o processo de assimilação e compartilhamento de conteúdos culturais os mais diversos, ele constata: a arte de narrar está em vias de extinção. Segundo o autor, com o desenvolvimento das forças produtivas, teríamos progressivamente perdido a faculdade de intercambiar experiências comunicáveis. O primeiro anúncio de seu desgaste é dado pelo surgimento do romance, ainda no início do período moderno. Fundamentalmente, o que distingue o romance da narrativa é que ele está essencialmente vinculado ao livro – daí a enorme importância da invenção da imprensa para sua difusão.
Mas não é só isso. Com a consolidação da burguesia e o acelerado aprimoramento das novas técnicas de reprodução, surge uma outra forma de comunicação, substancialmente diferente tanto da narrativa, quanto do romance: a informação. Apontando para as possíveis consequências deste fenômeno para a preservação da tradição oral e, por extensão, da memória coletiva, ele compara: “A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.”
Escovar a história a contrapelo
No entanto, apesar de diagnosticar um certo enfraquecimento das formas seculares de acesso e propagação do conhecimento, Benjamin não se volta nostalgicamente para um passado mítico imune às transformações históricas, mas vislumbra no âmago mesmo do desenvolvimento das novas tecnologias as chances para uma abrangente revolução social. Tanto que, no ensaio onde discute as perspectivas inauguradas pela fotografia e o cinema, o autor defende que a perda da “aura” seria o prenúncio de um processo irreversível, no qual as obras de arte trocariam seu valor de culto por seu valor de exposição. Isso quer dizer que, emancipadas do aqui-e-agora no qual foram criadas, elas deixariam a “existência parasitária” da tradição para alcançar o horizonte político propriamente dito. Segundo ele, mediante esta significativa virada, não só o plano da percepção estética, mas todo o âmbito da existência material se modificaria qualitativamente.
Não é supérfluo observar que se Benjamin insiste na urgência de uma ruptura com os dispositivos da ordem vigente, isso se deve não apenas às singularidades da conjuntura política alemã desde a ascensão de Hitler ao poder em 1933, mas à consciência mesma de que este catastrófico “estado de exceção” só foi possível sustentado por um longo e contínuo caminho percorrido pela civilização desde os primórdios.
Assim, antecipando aquilo que Adorno e Horkheimer chamarão de “autodestruição da razão” em sua célebre Dialética do Esclarecimento (1947), ele pondera em suas teses “Sobre o conceito de história” (1940): “Todos os bens históricos (...) têm uma origem sobre a qual não se pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que as criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.”
Pode bem ser que a disposição de “salvar” aqueles aspectos, muitas vezes, negligenciados pelos protocolos do saber oficial, e com estes “restos” compor uma nova constelação de conhecimentos a serem apropriados pelas próximas gerações seja, no fim, a maior e mais duradoura contribuição de Walter Benjamin para a educação – quem sabe, seu “salto tigrino” pelo céu da história.
Algumas obras do autor
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Ed. 34, 2002.
__________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
__________. Obras escolhidas, Vols. 1-3. São Paulo: Brasiliense, 1995.
__________. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
Sobre o autor
BRETAS, Aléxia. A constelação do sonho em Walter Benjamin. São Paulo: Humanitas, 2008.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: Brasiliense, 1993.
_________. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
MATOS, Olgária. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 2006.
PALHARES, Taísa. Aura – a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Barracuda, 2006.
ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
3 comentários:
Belo Blog. Parabéns! Já te adicionei no meu.
Olha inde eu vim parar??
Adorei! Que delícia te encontrar por aqui e desse jeito.
Saudade...
Tatiana
ps.: Banana manda beijos também.
Tati, Tati!
Também adorei a "sincronicidade".
De passagem por SP, não deixe de fazer contato. By the way, qual é mesmo o seu e-mail????????????????
Beijos pra vc e Banana,
A.
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