terça-feira, novembro 30, 2010

Aurélia, de Gérard de Nerval

"O sonho é uma segunda vida. Eu não pude transpor essas portas de cornucópia ou marfim que nos separam do mundo invisível sem deixar de estremecer. Os primeiros instantes do sono são a imagem da morte; um entorpecimento nebuloso apodera-se de nosso pensamento e não podemos determinar o instante preciso em que o Eu, sob uma outra forma, prossegue a obra da existência. Um vago subterrâneo ilumina-nos aos poucos, e da sombra e da noite desprendem-se as pálidas figuras gravemente imóveis que habitam a morada dos limbos. Depois o quadro se forma, uma nova claridade ilumina essas aparições extraordinárias, animando-as: o mundo dos Espíritos se abre para nós.

Swedenborg chamava tais visões de Memorabilia. Ele as atribuía com mais frequência ao devaneio do que ao sono; O asno de ouro de Apuleu, a Divina comédia de Dante, são os modelos poéticos desses estudos da alma humana. Tentarei, a exemplo deles, transcrever as impressões de uma longa doença ocorrida nos mistérios de meu espírito -- não sei por que me sirvo deste termo doença, pois jamais, no que me concerne, passei tão bem de saúde. Às vezes eu me sentia duplamente mais forte e ativo; parecia-me saber tudo, compreender tudo; a imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens chamam de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido?..."

Gérard de Nerval. Aurélia.
(São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 35)

2 comentários:

  1. Essa loucura tão lúcida do Nerval... Que vontade de reencontrar "As filhas do fogo", como nas horas de ócio da faculdade... Um imenso sonho escrito.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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