segunda-feira, abril 23, 2007
O Declínio de Zaratustra
Edvar Munch, Nietzsche, 1906.
342.
Incipit tragoedia [A tragédia começa] -- Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e foi para as montanhas. Lá ele desfrutou seu espírito e sua solidão e por dez anos não se cansou disso. Mas afinal seu coração mudou -- e uma manhã levantou-se ele com a aurora, voltou-se em direção ao Sol e falou-lhe assim: "Ó, astro-rei! Qual seria a tua felicidade, se não tivesses aqueles a quem iluminas? Durante dez anos subiste até a minha gruta: estarias farto de tua luz e desse caminho, se faltassem eu, minha águia e minha serpente; mas nós te esperamos a cada manhã, recebemos da tua abundância e te bendizemos por ela. Olha! Estou enfastiado de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado mel; preciso de mãos que estendam, quero oferecê-la e reparti-la, até que os sábios entre os homens novamente se alegrem de sua tolice e os pobres de sua pobreza. Para isso tenho que descer à profundeza: como fazes tu à noite, quando segues por trás do mar e levas a luz também ao mundo de baixo, ó estrela pródiga! -- assim como tu, eu tenho que declinar, como dizem os homens até os quais quero descer. Então, abençoa o cálice que quer transbordar, para que dele flua a água dourada e carregue a toda parte o brilho do teu enlevo! Olha! Este cálice quer novamente ficar vazio, e Zaratustra quer novamente ser homem -- Assim começou o declínio de Zaratustra.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 231.
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