segunda-feira, outubro 30, 2006

Amantes Constantes



Paris 1968: pólis contemporânea

No filme Amantes Constantes, o ano presente em todos os movimentos contrários ao status quo

Olgária C.F.Matos


Paris é a cidade-fetiche, a capital dos êxtases revolucionários e das esperanças utópicas:1789, 1830, 1848, 1871, 1936, 1968, 1986, 2006. Paris dos asilos políticos, das barricadas e dos tratados de paz. Cidade da diplomacia, durante o tempo em que “a Europa falava francês”. Cidade Cultural, desde a fundação da Academia Francesa, sob Luís XIV, quando a literatura foi considerada um bem de utilidade pública. Por um gesto teatral, o rei promoveu a socialização da literatura e da língua francesa face ao latim predominante nas instituições de ensino, pesquisa e cultura, devendo ambas concorrerem para a “primavera do mundo e do espírito”. A literatura como empreendimento de um Estado Cultural procurava fazer de Paris uma “nova Atenas, uma nova Alexandria, uma nova Roma”.

Les Amants Réguliers (Amantes Constantes) de Philippe Garrel inscreve-se nessa forma romanesca, especificamente francesa, da política - a teatralidade. Sua referência mais próxima é a Revolução Francesa. Não por acaso a Comuna de 1968 foi denominada “segunda Revolução Francesa”: na fita, a “grande Revolução” aparece no sonho de François (Louis Garrel), o estudante se encontrando com camponeses durante o Ancien Régime, como em um palco. Mas o sentido dessa continuidade revolucionária explicita-se, ao mesmo tempo, pela ruptura. Com efeito, na tradição do Ocidente e na Revolução de 1789, trata-se da teatralização da violência na qual cena e morte, pensamento e sangue estão estreitamente ligados, a ação histórica é cênica para ter um sentido, e é ação violenta para ser real. Ser teatral significa repetir um modelo, ritualizar um mito. Para evitar a farsa, a Revolução Francesa de 1789, que extraiu seu roteiro da Roma Antiga, necessitou da violência, obrigada a manter a seriedade da representação com a morte e com o Terror - o que, de alguma forma, pode ser visto como a conseqüência de suas premissas teatrais. Consta que em 1968, o filósofo hegeliano Alexander Kojève exclamou: “Le sang n’a pas coulé, rien ne s’est donc passé”(o sangue não foi derramado, logo não aconteceu nada). A seriedade fundava-se no fato de dispensar a morte ou se expor ao risco de morrer.

De fato, o maio francês é um tempo disruptivo. Para o diretor Philippe Garrel, as ações são duplas, ocorrem nas ruas e nos interiores (nos estúdios, nas repúblicas estudantis). Isto quer dizer que o levante de maio não consistiu apenas em ativismo político, mas tinha alma, cada ação era, por assim dizer, acompanhada de reflexão. Por isso recusou a lógica do vencedor e do vencido, do traumatismo e da morte. Sua palavra de ordem dizia: “A morte é necessariamente uma contra-revolução.” Não pretendeu criar consensos pela coerção, não tomou, naquelas jornadas de maio, nenhum dos palácios governamentais. Ocupou o teatro do Odeon porque, dizia um grafite, “quando a Assembléia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros burgueses tornam-se Assembléias Nacionais”.

Na fita, a noite de 11 de maio - a da barricada - tem a sua dramaturgia. Dois estudantes são filmados de costas, capacete na cabeça, bastão nas mãos e, de vez em quando, como diretores de cena, indicam um carro para ser tombado e incendiado, uma ou outra pedra a ser atirada, em uma atmosfera dramática no contraste preto-e-branco da película. Quanto à polícia, são três CRS que também desempenham seu papel, ensaiam a direção do dispositivo de gás lacrimogêneo, estudam o melhor ângulo e depois acompanham com o olhar a linha imaginária desenhada pelos projéteis em sua trajetória. Quando o chefe da segurança pública de Paris chega ao campo de batalha, os policiais, informalmente distribuídos na rua, conversam à espera. Com a voz de comando para o ataque aos estudantes, o chefe de polícia coloca-se na linha de fogo, os policiais marcham a passos regulares e, com seus escudos e cassetetes lembram o filme Alexandre Nevski ou um quadro de Uccello. Deslocam-se com movimentos firmes e regulares, mantendo o ritmo constante e contido.Tudo se passa como em uma galanterie, tão presente no teatro de Corneille, misto de comportamento nobre e coragem pessoal, dos dois lados.

Ao escolher o preto-e-branco, o contraste extremado de luz e sombra,o mais importante não é a estética nouvelle vague, a atmosfera das fitas de Godard, como em Viver a Vida, em que Lilie (Clotilde Hesme) glosa Ana Karina; no filme, a incomunicabilidade e a solidão metafísica são as condições do humano que fazem de maio de 68 um “passo existencial”. Não que o filme seja nostálgico,promova autocrítica ou seja “romance de formação”. Não dá lições nem tira conclusões das derivas do tempo. Apenas não existe a figura do militante ensimesmado na revolução, investido da tarefa de mudar o mundo e que, em linha reta, caminharia para a revolução e para o Palácio de Inverno. François, fugindo da polícia, refugia-se em um prédio de apartamentos, sobe em desespero as escadarias até o último andar e, já ouvindo o rumor de seus perseguidores, bate a uma porta e diz “senhor, abra, sinto muito medo”.

Como nos contos de Tchekov, há vidas paralelas em uma mesma vida: a da política, a dos paraísos artificiais - o haxixe e o ópio. Baudelaire, portanto. Uma revolução acontecendo a céu aberto, outra dentro de cada um. Trágicas, as personagens do filme, em meio a ações consumadas, vivem os combates com a lúcida consciência que previne o ato de ser ausência de pensamento.Assim, quando um dos jovens está fugindo da polícia e um “ativista” repassa um coquetel molotov para que ele o atire na viatura de polícia onde se encontram os CRS, ele pensa que seu gesto vai matá-los, abandona a arma, se abstém. Como em L’Espoir, de André Malraux, de nada vale a “ética da responsabilidade” - a do “político” e sua “razão de estado”, a do aprendiz de assassino que deve matar em nome da causa ou do partido - , mas vale a dos princípios, a da moral individual e subjetiva que é, melhor dizendo, a autonomia.

Há também no filme a percepção do vazio das palavras de ordem das revoluções tradicionais, como a Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, que falam, como por procuração, de um proletariado genérico. A isso os jovens opõem o paradoxo de um proletariado que “trai a revolução proletária”, que “não se encontra na retaguarda ou na vanguarda do movimento”, como diz o jovem protagonista. Não há praticamente nenhuma menção a líderes revolucionários, sejam eles Marx, Engels, Trotski, Rosa Luxemburgo ou Guevara. Na solidão do ato individual, sem crença no poder transcendente de uma causa ou de um partido, a ação se desenvolve in media res. Até porque há o diálogo com o filme de Bertolucci, Os Sonhadores. Se este se passa quase que exclusivamente em um quarto de apartamento e na última cena os jovens vão à manifestação, Amantes Constantes dá continuidade - ao mesmo tempo em que inverte - à ação da fita que o antecedeu: já na abertura encontra-se o mesmo personagem - François - na passeata, a fita começa onde Os Sonhadores termina.

Continuidade a conferir sentido inédito ao maio francês, a fita mescla, como os próprios acontecimentos, o épico e o lírico. Não se trata, na fita, nem do maio, nem de um programa revolucionário, de oposição política, de reivindicações segundo o jogo do poder que as oposições tradicionais dominam. Eis por que o filme não se detém em ocupações de fábrica, em reuniões de operários com seus líderes, em partidos políticos. O que os jovens contestaram e reconheceram em suas palavras de ordem, nos grafites, em suas faixas e panfletos foi o mundo desencantado do bem-estar material sem nenhum ideal de espírito. Recusaram o mundo em prosa, ao qual substituíram pela utopia. Utopia também em sentido renovado.

Utopias são, tradicionalmente, épicas, o herói é o grupo, uma classe, a nação, uma totalidade coesa que pratica altos feitos e proezas. O sujeito utópico é “um todo indiviso”, todos os que merecem compor um coletivo harmônico - razão pela qual a esquerda dificilmente deixa de ser épica. Já o nosso universo é o de M. Jourdan, em O Burguês Fidalgo, de Molière. Ele falava em prosa sem o saber - o que significa que o cotidiano prosaico resulta em um mundo sem elaboração literária. O maio de 1968 foi ao mesmo tempo épico, lírico e garantiu os direitos da subjetividade. Contra o mundo sem sonho, sem poesia - de prosa -, o maio se fez. Na fita, as personagens são vidas a caminho - de pintores, escultores, poetas. O ópio nos traz de volta Baudelaire, os paraísos artificiais e o amor. Como no teatro de Corneille. A fita converte a prosa em poesia, ou então, uma sociedade em comunidade política - aquela que pensa na felicidade e que encontrou novas razões da vida em comum. Felicidade que é sempre a prova dos nove.

O filme apresenta uma imagem da revolução em que o gesto particular é sempre o primeiro e o último na álgebra do tempo. Reencena o decoro, o discreto, o silêncio. Cena que repõe as regras da dramaturgia clássica: unidade de espaço - Paris; unidade de tempo - o ano de 1968; unidade de ação - a revolução como princípio literário e estético. A literatura, tal com aparece no filme, explica a vida e não o contrário. Mesmo porque difícil não reconhecer instantâneos ficcionais nas tardes de maio, os gavroches de Os Miseráveis, as barricadas de 1848 de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, O Camponês de Paris, de Aragon, para não falar em pinturas e desenhos das barricadas de 1871.

Uma situação revolucionária, mostra Garrel, não se reconhece pela tomada do poder mas por sua potência de sonho, por sua excedência, excedência que é sua sobrevida. O que dá a conhecer que um momento transformador se encontra suspenso na espera. Espera do sentido da morte do jovem poeta, da loucura do artista que se traveste, como um tableau-vivant,em personagem de Delacroix - roupas encantadas de sultão, turbante oriental. O estrangeiro, como as jornadas de maio, são um convite à viagem. Nos muros, a inscrição: “As Mil e uma Noites estão nas ruas da cidade.”

O suicídio do poeta é teatral e trágico, e nos fala do desejo insensato de felicidade. Revolução sem causa final, o maio de Philippe Garret. Revivê-lo na ficção manifesta que nada está perdido para a história quando um acontecimento torna-se citável: “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Cada momento vivido transforma-se em uma citation à l’ordre du jour.”

Que se pense no movimento estudantil recente contra a “Lei do Primeiro Emprego”, considerada humilhante pelos franceses. Na contramão do presente e seu gosto pela realismo político, jovens estudantes barraram o caminho a mais uma supressão de direitos sociais e da dignidade de cada um. Desfilaram, aos milhares, apoiados por toda a população, da Bastilha ao Sacre Coeur. Cena primitiva das revoluções libertárias e emancipatórias, a Bastilha foi o teatro da queda do absolutismo monárquico, o Sacre Coeur, em Montmartre, o monumento fúnebre aos fuzilados da Comuna de 1871. Lá estenderam a faixa: “1789-2006”. Nascimento e enterro dos ideais republicanos de igualdade, liberdade, fraternidade e douceur de vivre, caso tivesse sido aprovada. Foram cunhados pela primeira Revolução Francesa e, periodicamente, Paris os comemora, fazendo-os renascer a cada aniversário.

1968 é o ano matricial presente em todos os movimentos que recusam a submissão ao status quo, Paris, o teatro da Ágora moderna.

Olgária C.F.Matos é filósofa e professora da USP

Matéria publicada pelo caderno de cultura do Estado de S. Paulo, em 15/10/2006.

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