O excesso de consciência histórica está
conduzindo a arte a uma “nova” episteme
por Márcio Seligmann-Silva
Marcel Duchamp, LHOOQ, 1919.
A questão proposta pela Documenta 12, “A modernidade é nossa Antigüidade?”, pode ser interpretada de diferentes maneiras. Também se pode tentar especular quais seriam as afirmações indiretas contidas nela. A primeira delas é que a modernidade é algo passado, já saímos dela e estamos em um espaço que, por falta de outro nome, alguns denominam de pós-modernidade. Mas podemos pensar também que estamos vivendo uma hipermodernidade, ou seja, que nossa época realiza de modo radical e paroxístico os principais ingredientes da modernidade (com sua tentativa de construir uma sociedade marcada pela liberdade, igualdade e fraternidade).
Eu particularmente tendo a acreditar que desde a Primeira Guerra Mundial e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial a modernidade entrou em uma espiral de auto-desintegração, batizada por Adorno e Horkheimer de “Dialética do Esclarecimento”, de tal modo que já não podemos mais afirmar que o nosso “projeto” (ou nossos projetos) é o mesmo que dominou na modernidade. Mas com isto, evidentemente, apenas se coloca uma outra questão: como definir esta nova era, quais são nossos projetos? Temos projetos?
As diferentes nuances de interrogação contidas na pergunta inicial podem nos ajudar a responder, mesmo que de modo provisório e parcial, a esta busca de definição de nosso presente. Voltemos então à pergunta. “A modernidade é nossa Antigüidade?” pode significar: 1) a modernidade se tornou algo tão distante de nós quanto era a Antigüidade clássica, greco-latina, para a modernidade?; 2) o nosso presente é caracterizado pela mesma relação de mímesis e imitação da modernidade, que marcou a relação deste último período com a Antigüidade?
Estas duas modulações da pergunta inicial já trazem alguns problemas que não podem ser simplesmente postos de lado. O primeiro problema é a própria presunção de que se pode pensar no singular as categorias de modernidade e de Antigüidade. É impossível pensar a modernidade como um único momento que iria do século XIV ou XV até o século XX. Acho essencial se manter no mínimo uma divisão clara entre a “primeira modernidade”, que se estende até o final do século XVIII (i.e., até a Revolução Francesa e início da Revolução Industrial) e, por outro lado, o que podemos denominar de modernidade romântica (e pós-romântica) que se estenderia até meados do século XX. As vanguardas históricas se localizam, portanto, no fim da modernidade romântica. Por outro lado, a Antigüidade, que também está sendo tratada de modo singular por nossa pergunta, deve ser encarada justamente como um produto polimorfo destas duas modernidades: tanto da “Querelle des anciens et des Modernes”, que marcou o debate cultural europeu, de modo mais ou menos explícito, do século XVI ao XVIII, como do relativismo histórico pré-romântico do século XVIII e, ainda, do historicismo do século XIX.
Por uma questão de necessidade quase que didática, proponho utilizar aqui o termo Antigüidade na sua versão historicista e romântica, que logo apresentarei. Como veremos, a questão da imitação estava no cerne do debate em torno da definição da Antigüidade. Dito isto, podemos precisar melhor a questão inicial dividindo-a em diferentes momentos:
a) Qual era a relação da “primeira modernidade” com a Antigüidade? Tentaremos responder em largos pinceladas esta questão com base em Winckelmann, autor chave do final deste período.
b) Qual a relação do início da modernidade romântica com a Antigüidade? Kant, Friedrich Schlegel e Novalis apresentam algumas respostas importantes a esta questão.
c) Qual a relação da cena artística das últimas décadas com o passado? (Deixamos em aberto no momento a idéia de que as vanguardas históricas se tornaram uma espécie de “nova Antigüidade”.) Para responder a esta questão Walter Benjamin, Freud, Borges e alguns outros autores serão devidamente mobilizados.
Para ler este texto na íntegra, clique no título deste post.
quinta-feira, julho 29, 2010
terça-feira, julho 27, 2010
quinta-feira, julho 22, 2010
segunda-feira, julho 19, 2010
O Eterno e o Efêmero
"O eterno, de qualquer modo, é antes
um drapeado de vestido do que uma ideia".
Walter Benjamin, Arquivo "B", Passagens.
São Paulo; Belo Horizonte: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo; Ed. UFMG,
p. 107 [B 3,6].
um drapeado de vestido do que uma ideia".
Walter Benjamin, Arquivo "B", Passagens.
São Paulo; Belo Horizonte: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo; Ed. UFMG,
p. 107 [B 3,6].
quarta-feira, julho 14, 2010
Do Trágico ao Abjeto
Máscara de Dionísio, Myrina, século II a.C.
Se não fosse pela criação do resplendente panteão de deuses olímpicos, de que outra maneira poderiam os gregos – povo tão singularmente propício ao sofrimento –, suportar os horrores da existência humana? A pergunta é lançada pelo jovem Nietzsche, que, pelo viés da sabedoria de Sileno, toca em um ponto fundamental para a compreensão da essência mesma do trágico, da Grécia antiga à contemporaneidade: a questão do tratamento da dor e do sofrimento pelas representações artísticas.
Aléxia Cruz Bretas
Contra Platão, Aristóteles escreve em sua Poética sobre o prazer proporcionado pela mímesis, observando, a respeito da pintura, que temos prazer em contemplar coisas cuja visão é digna de pena quando sua imagem é reproduzida com perfeição – como no caso de bichos desprezíveis e cadáveres.
Já com relação às artes dramáticas, o filósofo deixa registrada sua canônica definição de tragédia, caracterizando-a como uma representação de uma ação nobre, de certa extensão, em linguagem elevada, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando piedade (éleos) e temor (fóbos), opera a catarse própria dessas emoções. Portanto, sob a perspectiva da teoria poética clássica, o abalo provocado pela apresentação de cenas chocantes, que geram compaixão e medo, enseja consequências tão prazerosas quanto úteis: purifica as emoções do espectador, reconciliando-o, ao mesmo tempo, com a realidade circundante.
Entretanto, é somente no fim do século XVII que a hegemonia da tríade belo-bom-verdadeiro viria a ser posta em questão, com um notável aumento do interesse pela psicologia da recepção das obras de arte. Neste sentido, a publicação, em 1694, da tradução de Boileau do tratado Do sublime, atribuído ao pseudo-Longino, lançaria as bases para uma nova estética, cujo epicentro seria exatamente a prolífera noção de “sublime”.
Caspar David Friedrich, Monge à beira-mar, 1809.
Se até então o foco da reflexão artística estivera concentrado em aspectos relativos às regras da composição, agora todas as atenções se voltam para o estudo dos sentimentos compostos. Fenômenos como o prazer advindo da contemplação de aparições asquerosas, do feio e de seres monstruosos passam a ser objeto de fecundos debates.
Com isso, opera-se uma radical mudança de paradigma, mediante a virada de uma estética calcada na primazia dos princípios racionais para uma outra centrada na imediatez e na emotividade. Ao invés da análise da imitação e das semelhanças entre o original e a cópia, a ênfase passa a recair sobre o espectador, bem como sobre a relação entre os estímulos e as emoções desencadeadas por eles.
Como resultado, surgem, a partir de meados do século XVIII, duas principais modalidades de “sublime”, cada uma das quais orientada por um vetor específico: são elas o “sublime” sensualista de Burke e o “sublime” espiritualista de Mendelssohn. De certo modo, pode-se dizer que ambas as tendências privilegiam o papel da dor, do sofrimento e dos sentimentos compostos na recepção das obras de arte, em suas múltiplas formas.
Teórico-chave da estética no século XVIII, Edmund Burke apresenta o sublime como um afeto em larga medida alheio aos protocolos da apreensão conceitual, precisamente por se constituir como a manifestação do ilimitado. O autor elabora sua teoria com base em uma distinção fundamental entre o prazer (pleasure) simples ou positivo e o prazer ou deleite (delight) relativo, proveniente da diminuição da dor, do perigo ou de um sofrimento qualquer.
Em linhas gerais, Burke caracteriza o sublime como fenômeno decorrente de um abalo de muita intensidade, capaz de provocar o que chama de deleite ou “horror deleitoso”. Para isso, a participação empática do espectador é condição sine qua non, já que a perda de controle diante de uma força superior que atinja e arrebate o indivíduo é requisito fundamental para a consumação da experiência artística em toda a sua plenitude.
Enquanto para Burke, a categoria do sublime indica algo “inominável”, para os teóricos alemães ele é um conceito entendido como manifestação do infinito, isto é, de uma entidade superior e até divina. Para Moses Mendelssohn, em particular, tal sentimento de natureza mista surge na apreensão de objetos cuja grandeza não poder ser abarcada de uma só vez pelos sentidos. Ou seja, há uma inadequação entre a obra contemplada e nossa limitada capacidade de percepção, tanto sensível quanto intelectual.
Por isso, o sublime se configura como o grau mais elevado do poético. Indissoluvelmente vinculado ao império das emoções heterogêneas – as quais tendem a nos impressionar mais –, o grande ideal da arte é, para Mendelssohn, o abalo prazeroso de seu espectador, conforme se verifica, por exemplo, nas telas de Caspar David Friedrich, William Turner e John Constable, entre outros.
Para evitar, quer a monotonia, quer o simples asco, a arte se volta então para a representação do que há de mais chocante, oscilando pendularmente entre os extremos do grito de dor e do silêncio absoluto: reflexo da consciência da insuperável incapacidade de abarcar o mundo de modo conceitualmente articulado.
Neste sentido, são dignas de nota as ideias de Lessing sobre o tema. Em resposta ao classicismo de Winckelmann, o autor redige seu Lacoonte a fim de explicitar as especificidades da pintura e da poesia, detendo-se na análise do grupo escultórico de mesmo nome para apresentar os fundamentos de sua pregnante concepção estética.
Grupo escultórico do Laocoonte, Vaticano.
Segundo ele, o artista plástico deve evitar sumariamente a representação do grito, do grotesco escancaramento da boca, sob o risco de ultrapassar, com a descuidada exposição da carne, ou das “entranhas”, os limites da própria arte. Para Lessing, a configuração da boca aberta redunda na saída do campo estético, isto é, na impossibilidade do exercício do pensamento ao ser subjugado pela própria realidade imediata. Reenviando ao texto de Mendelssohn, o autor é enfático: “Os sentimentos de asco são sempre natureza”.
Esta ideia, por sinal, revela-se de suma importância para o entedimento de um certo “deslizamento” semântico da noção do “sublime” – prevalente, sobretudo, entre os românticos – em direção a uma categoria crucial para a compreensão da representação da dor e do sofrimento na arte contemporânea: o abjeto. Se o trágico aspira à catarse e o sublime remete ao espiritual, o abjeto se volta para a materialidade do corpo. Não por acaso, a pele, os orifícios, fluidos e dejetos são os suportes privilegiados deste modo de apresentação do “asqueroso”.
Formulada por Julia Kristeva no ensaio Poderes do horror, de 1980, a categoria do abjeto deriva da psicanálise e da teoria literária, dirigindo-se, com Freud, Bataille e Lévi-Strauss, ao campo caótico e pré-simbólico da natureza – locus por excelência do animal e, de forma paradigmática, do cadáver. Como manifestação do que há de mais primitivo em nossa economia psíquica, o abjeto nasce de um recalque originário anterior ao próprio ego individualizado – como, por exemplo, no satanismo de Lautréamont, no teatro de Artaud e nas metamorfoses de Kafka.
Patricia Piccinini, We are family, 2003.
Em tempo, Kristeva, aristotelicamente, vislumbra na arte uma das modalidades de purificação do abjeto: a sua aparição teria o papel de controlar sua força. Contra Mendelssohn, Lessing e Kant, que percebiam na representação de objetos repugnantes ou asquerosos um tema completamente estranho à arte por ser “sempre natureza”, a autora mostra que o que importa agora é precisamente o contrário: a apresentação da realidade – que bloqueia nossa imaginação, mas fomenta o pensamento.
A título de ilustração, cabe citar, aqui, a exposição de renome internacional concebida pelo médico Gunther von Hagen, Mundos do corpo (Körperwelten). A mostra exibe “esculturas” feitas de cadáveres humanos submetidos ao processo de “plastinação” e apresentados como “obra de arte”. Fornecidos pela polícia chinesa e de países da ex-União Soviética, a famosa e não menos polêmica exposição dos corpos vem demonstrar, de maneira bastante eloquente, a relação espúria entre esta espécie de “arte abjeta” e a radicalização da figura política do homo sacer em nossa época.
Em conclusão, podemos afirmar que, contemporaneamente, a espetacularização da dor não redunda mais em uma kátharsis com a participação empática do espectador, mas procede a partir de um olhar educado pela percepção do sublime dos séculos XVIII e XIX, culminando com o avesso da identificação piedosa, ou seja, com a pura dessubjetificação sem o momento da fusão extática.
Neste caso, a catarse só pode ser pensada como escritura do corpo, isto é, enquanto comunhão regressiva com o proto-eu simbólico anterior ao lógos – que autores como Adorno se referirão como o “animal” ou o “inumano”. As fotomontagens de Joel Peter Witikin, as criaturas híbridas de Patricia Piccinini e algumas esculturas de Louise Bourgeois são apenas três de suas muitas facetas.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Arte Retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro.
LESSING, G. E. Lacoonte. São Paulo: Iluminuras, 1998.
LONGINO. Do sublime. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005.