terça-feira, outubro 31, 2006

Que o pensamento viva pela ação


Lygia Clark, Máscaras sensoriais, 1967.

Somos os propositores: enterramos a 'obra de arte' como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação.
Lygia Clark


In: Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Catálogo da exposição organizada pelo Musée des Beaux-Arts de Nantes e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, de 25 de janeiro a 26 de março de 2006.

Coexistence





segunda-feira, outubro 30, 2006

Como filosofar junto

É possível filosofar junto?

Amantes Constantes



Paris 1968: pólis contemporânea

No filme Amantes Constantes, o ano presente em todos os movimentos contrários ao status quo

Olgária C.F.Matos


Paris é a cidade-fetiche, a capital dos êxtases revolucionários e das esperanças utópicas:1789, 1830, 1848, 1871, 1936, 1968, 1986, 2006. Paris dos asilos políticos, das barricadas e dos tratados de paz. Cidade da diplomacia, durante o tempo em que “a Europa falava francês”. Cidade Cultural, desde a fundação da Academia Francesa, sob Luís XIV, quando a literatura foi considerada um bem de utilidade pública. Por um gesto teatral, o rei promoveu a socialização da literatura e da língua francesa face ao latim predominante nas instituições de ensino, pesquisa e cultura, devendo ambas concorrerem para a “primavera do mundo e do espírito”. A literatura como empreendimento de um Estado Cultural procurava fazer de Paris uma “nova Atenas, uma nova Alexandria, uma nova Roma”.

Les Amants Réguliers (Amantes Constantes) de Philippe Garrel inscreve-se nessa forma romanesca, especificamente francesa, da política - a teatralidade. Sua referência mais próxima é a Revolução Francesa. Não por acaso a Comuna de 1968 foi denominada “segunda Revolução Francesa”: na fita, a “grande Revolução” aparece no sonho de François (Louis Garrel), o estudante se encontrando com camponeses durante o Ancien Régime, como em um palco. Mas o sentido dessa continuidade revolucionária explicita-se, ao mesmo tempo, pela ruptura. Com efeito, na tradição do Ocidente e na Revolução de 1789, trata-se da teatralização da violência na qual cena e morte, pensamento e sangue estão estreitamente ligados, a ação histórica é cênica para ter um sentido, e é ação violenta para ser real. Ser teatral significa repetir um modelo, ritualizar um mito. Para evitar a farsa, a Revolução Francesa de 1789, que extraiu seu roteiro da Roma Antiga, necessitou da violência, obrigada a manter a seriedade da representação com a morte e com o Terror - o que, de alguma forma, pode ser visto como a conseqüência de suas premissas teatrais. Consta que em 1968, o filósofo hegeliano Alexander Kojève exclamou: “Le sang n’a pas coulé, rien ne s’est donc passé”(o sangue não foi derramado, logo não aconteceu nada). A seriedade fundava-se no fato de dispensar a morte ou se expor ao risco de morrer.

De fato, o maio francês é um tempo disruptivo. Para o diretor Philippe Garrel, as ações são duplas, ocorrem nas ruas e nos interiores (nos estúdios, nas repúblicas estudantis). Isto quer dizer que o levante de maio não consistiu apenas em ativismo político, mas tinha alma, cada ação era, por assim dizer, acompanhada de reflexão. Por isso recusou a lógica do vencedor e do vencido, do traumatismo e da morte. Sua palavra de ordem dizia: “A morte é necessariamente uma contra-revolução.” Não pretendeu criar consensos pela coerção, não tomou, naquelas jornadas de maio, nenhum dos palácios governamentais. Ocupou o teatro do Odeon porque, dizia um grafite, “quando a Assembléia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros burgueses tornam-se Assembléias Nacionais”.

Na fita, a noite de 11 de maio - a da barricada - tem a sua dramaturgia. Dois estudantes são filmados de costas, capacete na cabeça, bastão nas mãos e, de vez em quando, como diretores de cena, indicam um carro para ser tombado e incendiado, uma ou outra pedra a ser atirada, em uma atmosfera dramática no contraste preto-e-branco da película. Quanto à polícia, são três CRS que também desempenham seu papel, ensaiam a direção do dispositivo de gás lacrimogêneo, estudam o melhor ângulo e depois acompanham com o olhar a linha imaginária desenhada pelos projéteis em sua trajetória. Quando o chefe da segurança pública de Paris chega ao campo de batalha, os policiais, informalmente distribuídos na rua, conversam à espera. Com a voz de comando para o ataque aos estudantes, o chefe de polícia coloca-se na linha de fogo, os policiais marcham a passos regulares e, com seus escudos e cassetetes lembram o filme Alexandre Nevski ou um quadro de Uccello. Deslocam-se com movimentos firmes e regulares, mantendo o ritmo constante e contido.Tudo se passa como em uma galanterie, tão presente no teatro de Corneille, misto de comportamento nobre e coragem pessoal, dos dois lados.

Ao escolher o preto-e-branco, o contraste extremado de luz e sombra,o mais importante não é a estética nouvelle vague, a atmosfera das fitas de Godard, como em Viver a Vida, em que Lilie (Clotilde Hesme) glosa Ana Karina; no filme, a incomunicabilidade e a solidão metafísica são as condições do humano que fazem de maio de 68 um “passo existencial”. Não que o filme seja nostálgico,promova autocrítica ou seja “romance de formação”. Não dá lições nem tira conclusões das derivas do tempo. Apenas não existe a figura do militante ensimesmado na revolução, investido da tarefa de mudar o mundo e que, em linha reta, caminharia para a revolução e para o Palácio de Inverno. François, fugindo da polícia, refugia-se em um prédio de apartamentos, sobe em desespero as escadarias até o último andar e, já ouvindo o rumor de seus perseguidores, bate a uma porta e diz “senhor, abra, sinto muito medo”.

Como nos contos de Tchekov, há vidas paralelas em uma mesma vida: a da política, a dos paraísos artificiais - o haxixe e o ópio. Baudelaire, portanto. Uma revolução acontecendo a céu aberto, outra dentro de cada um. Trágicas, as personagens do filme, em meio a ações consumadas, vivem os combates com a lúcida consciência que previne o ato de ser ausência de pensamento.Assim, quando um dos jovens está fugindo da polícia e um “ativista” repassa um coquetel molotov para que ele o atire na viatura de polícia onde se encontram os CRS, ele pensa que seu gesto vai matá-los, abandona a arma, se abstém. Como em L’Espoir, de André Malraux, de nada vale a “ética da responsabilidade” - a do “político” e sua “razão de estado”, a do aprendiz de assassino que deve matar em nome da causa ou do partido - , mas vale a dos princípios, a da moral individual e subjetiva que é, melhor dizendo, a autonomia.

Há também no filme a percepção do vazio das palavras de ordem das revoluções tradicionais, como a Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, que falam, como por procuração, de um proletariado genérico. A isso os jovens opõem o paradoxo de um proletariado que “trai a revolução proletária”, que “não se encontra na retaguarda ou na vanguarda do movimento”, como diz o jovem protagonista. Não há praticamente nenhuma menção a líderes revolucionários, sejam eles Marx, Engels, Trotski, Rosa Luxemburgo ou Guevara. Na solidão do ato individual, sem crença no poder transcendente de uma causa ou de um partido, a ação se desenvolve in media res. Até porque há o diálogo com o filme de Bertolucci, Os Sonhadores. Se este se passa quase que exclusivamente em um quarto de apartamento e na última cena os jovens vão à manifestação, Amantes Constantes dá continuidade - ao mesmo tempo em que inverte - à ação da fita que o antecedeu: já na abertura encontra-se o mesmo personagem - François - na passeata, a fita começa onde Os Sonhadores termina.

Continuidade a conferir sentido inédito ao maio francês, a fita mescla, como os próprios acontecimentos, o épico e o lírico. Não se trata, na fita, nem do maio, nem de um programa revolucionário, de oposição política, de reivindicações segundo o jogo do poder que as oposições tradicionais dominam. Eis por que o filme não se detém em ocupações de fábrica, em reuniões de operários com seus líderes, em partidos políticos. O que os jovens contestaram e reconheceram em suas palavras de ordem, nos grafites, em suas faixas e panfletos foi o mundo desencantado do bem-estar material sem nenhum ideal de espírito. Recusaram o mundo em prosa, ao qual substituíram pela utopia. Utopia também em sentido renovado.

Utopias são, tradicionalmente, épicas, o herói é o grupo, uma classe, a nação, uma totalidade coesa que pratica altos feitos e proezas. O sujeito utópico é “um todo indiviso”, todos os que merecem compor um coletivo harmônico - razão pela qual a esquerda dificilmente deixa de ser épica. Já o nosso universo é o de M. Jourdan, em O Burguês Fidalgo, de Molière. Ele falava em prosa sem o saber - o que significa que o cotidiano prosaico resulta em um mundo sem elaboração literária. O maio de 1968 foi ao mesmo tempo épico, lírico e garantiu os direitos da subjetividade. Contra o mundo sem sonho, sem poesia - de prosa -, o maio se fez. Na fita, as personagens são vidas a caminho - de pintores, escultores, poetas. O ópio nos traz de volta Baudelaire, os paraísos artificiais e o amor. Como no teatro de Corneille. A fita converte a prosa em poesia, ou então, uma sociedade em comunidade política - aquela que pensa na felicidade e que encontrou novas razões da vida em comum. Felicidade que é sempre a prova dos nove.

O filme apresenta uma imagem da revolução em que o gesto particular é sempre o primeiro e o último na álgebra do tempo. Reencena o decoro, o discreto, o silêncio. Cena que repõe as regras da dramaturgia clássica: unidade de espaço - Paris; unidade de tempo - o ano de 1968; unidade de ação - a revolução como princípio literário e estético. A literatura, tal com aparece no filme, explica a vida e não o contrário. Mesmo porque difícil não reconhecer instantâneos ficcionais nas tardes de maio, os gavroches de Os Miseráveis, as barricadas de 1848 de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, O Camponês de Paris, de Aragon, para não falar em pinturas e desenhos das barricadas de 1871.

Uma situação revolucionária, mostra Garrel, não se reconhece pela tomada do poder mas por sua potência de sonho, por sua excedência, excedência que é sua sobrevida. O que dá a conhecer que um momento transformador se encontra suspenso na espera. Espera do sentido da morte do jovem poeta, da loucura do artista que se traveste, como um tableau-vivant,em personagem de Delacroix - roupas encantadas de sultão, turbante oriental. O estrangeiro, como as jornadas de maio, são um convite à viagem. Nos muros, a inscrição: “As Mil e uma Noites estão nas ruas da cidade.”

O suicídio do poeta é teatral e trágico, e nos fala do desejo insensato de felicidade. Revolução sem causa final, o maio de Philippe Garret. Revivê-lo na ficção manifesta que nada está perdido para a história quando um acontecimento torna-se citável: “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Cada momento vivido transforma-se em uma citation à l’ordre du jour.”

Que se pense no movimento estudantil recente contra a “Lei do Primeiro Emprego”, considerada humilhante pelos franceses. Na contramão do presente e seu gosto pela realismo político, jovens estudantes barraram o caminho a mais uma supressão de direitos sociais e da dignidade de cada um. Desfilaram, aos milhares, apoiados por toda a população, da Bastilha ao Sacre Coeur. Cena primitiva das revoluções libertárias e emancipatórias, a Bastilha foi o teatro da queda do absolutismo monárquico, o Sacre Coeur, em Montmartre, o monumento fúnebre aos fuzilados da Comuna de 1871. Lá estenderam a faixa: “1789-2006”. Nascimento e enterro dos ideais republicanos de igualdade, liberdade, fraternidade e douceur de vivre, caso tivesse sido aprovada. Foram cunhados pela primeira Revolução Francesa e, periodicamente, Paris os comemora, fazendo-os renascer a cada aniversário.

1968 é o ano matricial presente em todos os movimentos que recusam a submissão ao status quo, Paris, o teatro da Ágora moderna.

Olgária C.F.Matos é filósofa e professora da USP

Matéria publicada pelo caderno de cultura do Estado de S. Paulo, em 15/10/2006.

domingo, outubro 29, 2006

Guaraná Power

Coletivo dinamarquês acusa Fundação Bienal de censura



Apresentada na Bienal de Veneza em 2003, a obra "Guaraná Power", do coletivo dinamarquês Superflex, foi selecionada pela curadoria da 27ª Bienal de São Paulo mas teve sua exibição vetada pela Fundação realizadora da mostra.

Tônico de sabor concentrado e propriedades energéticas, de grande sucesso na Europa, o Guaraná Power tem como função primeira a crítica ao monopólio do mercado e a suas conseqüências nas comunidades agricultoras. A partir de um estudo econômico da cidade de Maués, no Amazonas, detectou-se o impacto econômico da redução do preço das sementes de guaraná por parte das grandes indústrias. "Estabelecemos o valor de R$ 15 para o quilo de sementes, enquanto as indústrias pagam R$ 7", afirmou Bjornstjerne Christiansen, membro do Superflex, em entrevista à Folha de São Paulo. O projeto conta com o apoio da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Governo do Estado do Amazonas.

Impedidos de apresentar a obra – e tendo suas páginas do catálogo da mostra cobertas por tarjas pretas –, os dinamarqueses distribuíram o Guaraná Power, sem rótulo, em vernissages na Galeria Vermelho e Instituto Tomie Ohtake, além de pontos espalhados pela capital paulista. O coletivo Superflex já recebeu elogios do Ministro da Cultura Gilberto Gil em junho deste ano, ao apresentar no Brasil o projeto Free Beer ("cerveja livre"), cerveja cuja fórmula é licenciada em Creative Commons e permite que qualquer pessoa interessada possa fabricá-la ou aprimorá-la.

Na entrevista coletiva dos organizadores da Bienal, o presidente da Fundação Bienal, Manuel Francisco Pires da Costa, optou por, além de responsabilizar a assessoria jurídica, emitir sua opinião pessoal acerca da obra polêmica: "Eu jamais interferi no mérito das obras selecionadas. Aliás, a acho de muito mau gosto e, se não julguei, estou julgando agora. Foi o departamento jurídico da Bienal quem informou que essa obra não estava de acordo com as regras da legislação brasileira".

"O que eles sempre nos disseram é que isso [a referência à marca do guaraná Antarctica] poderia ser um problema, mas o presidente nunca nos deu respostas claras. Nossas obras sempre envolvem negociação, mas com ele tivemos as portas fechadas. Se eles olhassem como ficou a lata [diferente da criação original], não haveria problema legal", afirmou Jakob Fenger, um dos membros do coletivo, em entrevista para a Folha de São Paulo, em matéria que informa ainda: "Por meio de sua assessoria, a AmBev [fabricante do guaraná Antarctica] declarou não ver problema na obra. Diz não ter tido nenhum contato com o grupo".


O Superflex ainda distribuiu à imprensa, no dia da coletiva, o documento "A obra de arte que os brasileiros não terão permissão de ver na Bienal" . Nele, afirma-se que o "presidente da Fundação Bienal censurou um trabalho com reconhecimento internacional para o público brasileiro", que, segundo o texto divulgado, teria sido recusado "por não ser considerada uma 'atividade artística'".

A polêmica gerada pela Fundação Bienal fortaleceu a ação política do coletivo dinamarquês, tendo a censura gerado uma reação oposta à desejada. Foi grande o interesse público pelo modelo econômico e social do projeto Guaraná Power -- baseado no colaborativismo do software livre -- e positiva a repercussão do tema, exatamente onde interessa: no país fornecedor da matéria-prima de uma das bebidas estrangeiras mais famosas no exterior.

terça-feira, outubro 24, 2006

Toda Arte é Política


Hélio Oiticica, Tropicália, 1967

Às vésperas da Bienal, a curadora da 27ª Bienal de São Paulo, Lisette Lagnado, fala sobre a mostra como "suspensão do cotidiano"

FOLHA - Você partiu de conceitos do Hélio Oiticica, dos anos 60 e 70, para criar o projeto desta Bienal. Em que medida, após a seleção de artistas e a montagem dos trabalhos, aquelas idéias podem ser observadas na produção contemporânea?

LAGNADO - Acho que a primeira vez que tive esse "feeling" foi quando entrei em contato com o trabalho do Rirkrit Tiravanija, porque eu via aquele sujeito fazendo proposições para se ficar junto, cozinhando e eu lembrava disso como uma proposição para "Parangolé-área". Então, foi aí que de fato comecei a achar que o Hélio tinha sido visionário, no sentido que, na década seguinte, em 80, quando ele morre, há a volta à pintura, de certa forma à mercantilização da arte, e isso ele nunca imaginava. Ele caminhava para algo mais voltado ao que fazia o Gordon Matta-Clark, de intervenções urbanas. Em meados dos anos 90, vimos proposições como a do Rirkrit serem usadas por vários artistas e ele se tornou um ícone, mas eu achava que o Hélio faltava nessa bibliografia. O que ele conceituou é o que está acontecendo e o primeiro fenômeno mais direto, que demonstra isso, é o Rirkrit.

FOLHA - Mas a arte, e nesse caso a Bienal, não pode ser como um espaço experimental de como viver junto? Não era isso, afinal, que o Hélio Oiticica propunha?

LAGNADO - Eu diria que o conceito de Hélio, mais próximo de sua pergunta, seria o de Crelazer. Acontece paralelamente com a preparação de "Éden" para Whitechapel (1969) e aí o artista já quer implantar uma nova prática de vida, pautada por uma percepção criativa da parte dos indivíduos e um forte sentido de participação coletiva. A "Cama-Bólide" é um dos exemplos mais emblemáticos; ou então sentir na planta do pé a textura da areia, a temperatura da água, o barulho da palha. Mas vamos combinar que estas experiências sensoriais faziam sentido dentro daquele contexto de descoberta do corpo livre, etc. Viver junto hoje não pode ser traduzido literalmente. Quais são nossas questões do agora? O último pronunciamento do papa? Não sei. O que resta do Crelazer é uma crítica à sociedade do espetáculo, a um lazer ativo e não passivo.

Matéria publicada pelo Caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo, do dia 1/10/2006.